Enfermaria em base do PAIGC no interior do
território da Guiné (desconhecida)
17. = Fale-me um pouco mais sobre
a ajuda aos civis.
Tínhamos uma orientação geral de atender, na medida das
possibilidades, a população civil de acordo com os
medicamentos de que dispúnhamos, ou pelo menos atender os doentes. Em relação à
limitação de operações devido à escassez de material, estando em Boké, numa
ocasião as operações cirúrgicas tinham que ser autorizadas pela direcção
política do PAIGC da zona.
Citação:
Mikko Pyhälä (1970-1971), "Mulher com
criança aguardando uma consulta num hospital do PAIGC", CasaComum.org,
Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.042
(2017-2-04)
Como
estavam limitadas as intervenções cirúrgicas tivemos que falar com os alfaiates
da região, a quem chamam de feats [talvez
colaboradores?!], para confeccionar uma espécie de suspensores, porque a
direcção política nos enviava algumas vezes casos de hérnias grandes e não as
podíamos operar. Nestes casos enviávamo-los ao alfaiate explicando que isso
lhes ia reduzir a hérnia, e que tinham de esperar até que fosse possível
operar.
18. = Quando o avisam sobre o
final da missão e como saiu?
No final de
1967, recebo uma mensagem na enfermaria [no mato] aonde me encontrava, dando
conta de que já tinha chegado o meu substituto. Vários companheiros cubanos e
guineenses saímos caminhando do Sul até a um ponto da fronteira com a
Guiné-Conacri, aonde se encontrava um transporte que nos esperava.
Durante a
caminhada de cerca de dez quilómetros, tínhamos que evitar as emboscadas dos
portugueses e passar por uma zona descampada, onde a aviação lusitana costumava
metralhar as pessoas ou grupos que por ali passavam.
Os camiões
levavam equipamento e alimentos aos guerrilheiros e eram conduzidos por
motoristas-mecânicos cubanos.
A saída da
Guiné-Bissau foi em finais de 1967, e na Guiné-Conacri estivemos vários dias
num acampamento que chamavam Boa Vista. Ali confraternizámos com o substituto
que chegara, sendo que este grupo já não era constituído só por militares, pois
existiam alguns médicos civis. O nosso grupo, que foi o primeiro a chegar para
apoiar a guerrilha, pude constatar que as coisas iam mudando.
Em Boké o
hospital tinha melhorado substancialmente, à frente do qual estava um
ortopédico de certa experiência, o doutor Noa, e já tinham um pequeno
laboratório, um técnico de raios X e um anestesista. A todos os cubanos que
regressavam e passavam por Boké, faziam-se exames médicos e clínicos para
tentar descobrir alguma doença endémica da região.
Por
exemplo, eu tive paludismo, doença que não existe em Cuba, e eu não sabia até
ao momento que me fizeram o exame. Este sofrimento levava a um tratamento em
duplicado, um para o parasita adulto e outro para a lavra. Em Conacri não
existia o medicamento, sendo necessário adquiri-lo no Senegal ou na Costa do
Marfim. Assim, fizeram-me o tratamento, que era com injecções intravenosas e
comprimidos.
19. = Como foi a saída da Guiné e
a chegada a Cuba?
Foi por
Conacri, no barco cubano Pinar del Rio. O filme voltou-se a repetir porque com
esta embarcação voltaram a acontecer os mesmos problemas como os do Lídia Doce,
com várias avarias ocorridas no alto mar [Oceano Atlântico].
Chegámos a Cuba
em janeiro de 1968, e nos recebeu aquele que é agora general de divisão na
reserva, Guillermo Rodriguez del Pozo [1929-2016.07.22], que havia substituído
José Ramón Balaguer [Cabrera] [n-1932] como chefe dos Serviços Médicos do
MINFAR [Ministério das Forças Armadas Revolucionárias]. Estivemos dois meses de
férias e de seguida incorporei-me no Hospital Militar Central Dr. Carlos J.
Finlay, como instrutor docente de cirurgia.
20. = Como transitou para a
especialidade de cardiologia?
Mais tarde sou nomeado pelo dr. Guilhermo Rodriguez del Pozo o
qual me apresenta a ideia de realizar um estágio
em cirurgia cardiovascular. Eu tinha outras ideias, mas depois de reflectir e
de ouvir alguns conselhos decidi aceitar. Ele próprio me apresentou ao dr. Noel
González [Julio Noel González Jiménez (1928-2016.01.17)], no Instituto de Cirurgia
Cardiovascular. [O prof. dr. Noel González (foto ao lado) é considerado
pioneiro na cirurgia cardiovascular ao realizar em 1985 o primeiro transplante
de coração de Cuba e da América Latina].
Ali estive
quatro anos em estágio na especialidade. Posteriormente passei de novo ao
Hospital Finlay, para o Serviço de Cirurgia Cardiovascular Hemisférica. Nesta
função permaneci dois anos, e para que não cristaliza-se no serviço de cirurgia
cardiovascular nas Forças Armadas, solicitei a passagem para a cirurgia geral.
Na sequência da autorização, nomearam-me Chefe de Serviço dessa especialidade e
mais tarde Chefe de Departamento.
Em 1977,
quando se cria o serviço de cirurgia cardiovascular das Forças Armadas no
Hospital Naval Luís Diaz Soto transfiro-me para lá como Chefe de Serviço. Em
1982 passo para o Hospital [Clínico Quirúrgico] Hermanos Ameijeiras para fundar
o serviço de cirurgia cardiovascular.
No ano de
1992 volto à vida militar e passo para o MININT [Ministério do Interior] como
Subdirector do Hospital Nacional de Reclusos situado no Combinado Leste, aonde
estou três anos até que me jubilei em 1994.
21. = Sentia-se bem como jubilado?
Não, era
uma vida muito aborrecida e após três anos de jubilação, chamam-me para que
ocupe um lugar de cirurgia ambulatória no Município de Havana Leste, aonde
continuo até agora (janeiro de 2003, quando se realizou esta entrevista) e
aonde realizo pequenas operações três vezes por semana.
22. = Em quantas operações ao
coração participou?
São
incontáveis as intervenções cirúrgicas cardiovasculares, mas como cirurgião
principal tenho doze transplantes de coração. Um deles, a um doente de apelido
Lafita que ainda vive. Já leva catorze anos desde que lhe fiz a operação.
1. – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Corolário
das setenta e cinco respostas dadas pelos médicos: Domingo Diaz Delgado (28),
Amado Alfonso Delgado (25) e Virgílio Camacho Duverger (22), por esta ordem, às
questões abertas formuladas pelo jornalista cubano Hedelberto
López Blanch, que permitiram elaborar treze postes
distribuídos ao longo dos últimos oito meses (junho’16 a fevereiro’17), resta-me
terminar acrescentando alguns apontamentos pessoais.
1.
– No global, considero este
trabalho de relevante valor sociocultural e histórico no contexto da dita
“Guerra do Ultramar”, por nela ter participado (1972/1974), pois permitiu-me
compreender melhor o outro lado do combate no CTIGuiné, não só na vertente militar,
mais física, musculada ou operacional, como na dimensão política, que antes (na
época) não passavam de meras suposições ou hipóteses, mas que ajudaram a ficar
mais próximo da realidade.
2.
– Estes valores, ainda que resultem
tão só de três depoimentos de uma panóplia de memórias e experiências gravadas,
cada uma delas num espaço temporal de duas dezenas de meses, são-me suficientes
para criar empatias quando aos sentimentos, emoções e tensões que influenciavam
comportamentos e desempenhos ao comum dos mortais (de ambos os lados), conforme
as circunstâncias e os contextos, mas que não poderiam afectar a tomada de decisões
ajustadas, nos casos colocados na fronteira entre a vida e a morte, aos que
decidiram seguir esta profissão – os médicos.
3.
– Antes de terminar, recupero um
quadro de memórias transmitidas pelo médico Amado Alfonso Delgado, como exemplo
paradigmático da tríade: sentimentos, emoções e tensões, visando sintetizar
aquela que foi a odisseia dos “internacionalistas cubanos” no âmbito da sua
ajuda humanitária ao PAIGC:
“Entre maio de 1968 e setembro de
1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector
L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os
primeiros nove meses de 1969, durante os quais teve muito trabalho, com enormes
sobressaltos, muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga
(com diarreias), que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a
destruição das suas enfermarias, por quatro vezes.
Esteve cercado por várias vezes.
Viu aviões bombardeiros, helicanhões, barcos da marinha e militares descerem de
helicóptero. Para além dos constantes ataques a que esteve sujeito, foi também
atacado por melgas que lhe perfuraram a roupa que tinha no corpo e por centenas
de abelhas que lhe “ofereceram” os seus ferrões. Por tudo isto passou vários
meses sem ter contacto com o mundo. Devido a todas estas ocorrências e das
tensões a elas associadas, por efeito da intervenção dos militares portugueses
em diferentes acções naquela região, acreditou não ser possível sobreviver,
pensando muito nos filhos, que iriam ficar sem pai… coitados”.
4.
– Concluo este trabalho, a que
chamei de «memórias de médicos cubanos (1966-1969)», afirmando que “conclusão”
[para mim] não significa o fim… mas, antes, o princípio de um outro processo de
aquisição de novos saberes, que podem incluir outros clínicos.
Até lá…
Obrigado
pela atenção.
Um
forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge
Araújo.
07FEV2017.
[Consulta
em 30 de maio de 2016]. Disponível em:
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