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Assunto
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O 1.º ANO DA CART 3494 NO XIME
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De
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Para
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Sousa de Castro
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Enviado
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segunda-feira, 6 de
Julho de 2015 14:39
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Caríssimo
Camarada Sousa de Castro
Os
meus melhores cumprimentos.
Com
este novo texto pretendi fazer uma pequena síntese ao que foram os primeiros
quatrocentos dias [treze meses] passados no Aquartelamento do Xime pelo
contingente da CART 3494, destacando o sentido das nossas diferentes
missões/acções naquele contexto de elevado risco, e suas consequências, num
tempo em que a esmagadora maioria do seu colectivo tinha 21/22 anos.
Agora
temos duas vezes mais. É a vida em movimento acelerado.
A
este propósito, aproveitei para referir mais alguns detalhes de outras
ocorrências em que participámos, com um só objectivo: ampliar o quadro
historiográfico da nossa passagem pelo CTIG.
Com
um forte abraço de amizade.
Jorge
Araújo.
Julho/2015
GUINÉ
Jorge
Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo,
1972/1974)
O 1.º ANO DA CART
3494 NO XIME
(JANEIRO DE 1973 –
MÊS DE MAIS RECORDAÇÕES)
- As acções do PAIGC
que antecederam o 1.º Aniversário -
1. - INTRODUÇÃO
Chegados
ao Aquartelamento do Xime, na margem esquerda do Rio Geba, a 27JAN1972, depois de um mês de I.A.O. cumprido em Bolama, o
contingente da Companhia de Artilharia
3494 [CART 3494] aí
permaneceria, como primeiro destino, até Março de 1973 [não podendo confirmar o
dia por estar ausente em Lisboa e por ele ser díspar nos documentos
consultados], sendo transferido para Mansambo, no âmbito de uma nova estratégia
militar, por troca com a CART 3493, a segunda de três unidades operacionais do
BART 3873, esta por haver recebido “guia de marcha” para Cobumba, sito na
Região do Cantanhez.
Durante os primeiros treze meses da sua missão ultramarina
naquele contexto de elevado risco, certamente semelhante a tantos outros
lugares espalhados pelo território do CTIG, foram muitas e diversificadas as ocorrências
aí contabilizadas por este colectivo metropolitano formado em Vila Nova de Gaia
[RAP2], algumas de cariz excepcional, pela ausência de registos anteriores,
levando-nos a classificá-las de experiências únicas e marcantes para o resto
desta nossa passagem terrena [lá e cá], por nos suscitarem permanente apelo à
natureza humana que tem como elemento fundante e filosófico o conceito de transcendência
ou superação.
Foto 1. Cais do Xime - Jun/1972.
Margem esquerda do Rio Geba, local carregado de simbolismo para a CART 3494.
Aqui encostou, em 27JAN1972, vindo de Bolama, a LDG que transportou o
contingente da CART 3494. Daqui saiu o Sintex com o grupo de catorze militares envolvidos
naquele que ficou conhecido por «Naufrágio do Geba», em 10AGO1972, de que
resultaram três mortos.
Foto 2. Xime - Ago/1972. Viagem de
Sintex no Geba efectuada uma semana antes do «Naufrágio», onde o fenómeno
«macaréu» é a sua maior armadilha.
O movimento permanente entre as escalas
de mutações então verificadas [porque os fenómenos da guerra não são neutrais]
foi evoluindo influenciado pelas acções [atitudes], pelo sentido das mesmas [objectivos,
finalidades e políticas] e pelas formas de acção [individuais e colectivas] levadas
à prática pelos seus actores durante cada um dos períodos de tempo em que
actuaram, independentemente das hierarquias ou das suas posições no conflito,
internas e/ou externas.
Porque nela participámos, e sabendo-se que é por via da
descrição dos factos e feitos que ajudamos a fazer a sua história, o sentido da
nossa acção tem sido quase exclusivamente de informante privilegiado, narrando
na primeira pessoa as principais ocorrências ainda disponíveis na memória,
todas com mais de quatro décadas [1972/1974], fazendo-as acompanhar, sempre que
possível, com imagens com elas relacionadas, visando deixar testemunhos para os
que nelas se venham a interessar - as gerações vindouras.
2. - AS PRINCIPAIS
OCORRÊNCIAS DURANTE O 1.º ANO NO MATO
Tendo por cenário a situação geográfica
do Aquartelamento do Xime [mapa 1], desde a sua chegada que o colectivo da CART 3494 constatou que as suas
principais missões/acções estavam relacionadas com o conceito de SEGURANÇA, tarefas prioritárias a
incluir na agenda diária dos diferentes Grupos de Combate.
A primeira, considerada «Rainha» no
conjunto de todas as outras, teria de ser cumprida com o máximo rigor, uma vez
que tínhamos de garantir a segurança possível em parte do troço que ligava o Xime
a Bambadinca, por causa/efeito do tráfego rodoviário que aí ocorria, uma vez
que a possibilidade mais exequível para chegar à capital [Bissau], ou desta ao
extremo leste do território, de que são exemplos: Bafatá, Contuboel, Nova
Lamego, Piche, Canquelifá, Paunca, Galomaro, Mansambo, Xitole, Saltinho, …, só
poderia acontecer por via marítima [Rio Geba].
Porque o cais do Xime [foto 3] era
utilizado diariamente, quer como ponto de chegada e/ou de partida, por onde
circulavam semanalmente centenas de militares e civis e uma vasta panóplia de
produtos e equipamentos, este assumia-se como local político-militar-económico
estratégico por excelência.
Para garantir a máxima segurança a todos
os que dela necessitavam naquele troço, os milicianos da CART 3494 cumpriam
essa missão diária entre as 07.00/07:30H até ao pôr-do-sol (ocaso) ou, em
situações particulares, até que ficassem concluídas as actividades portuárias,
no local designado por Ponta Coli,
onde, por duas vezes, o grupo escalado foi surpreendido por bigrupos de
guerrilheiros do PAIGC, em 22ABR1972 e 01DEC1972, daí resultando baixas de
ambos os lados.
Outro tipo de segurança que realizávamos
estava relacionada com a protecção às embarcações que navegavam no Geba, onde os
GComb da CART 3494, algumas vezes reforçados por GComb da CCAÇ 12, percorriam
os itinerários ícones do Xime, como sejam os exemplos de «Ponta Varela»,
«Medina Colhido», «Gundaguê Beafada» e «Poindon», em patrulhamentos ofensivos,
montagem de emboscadas e outras missões/acções mais específicas, verificando-se
em alguns deles contactos mas sem baixas nas NT, em oposição com o IN,
destacando-se entre outros casos o de Mário Mendes, CMDT do PAIGC na zona,
morto na Ponta Varela, em 25MAI1972.
Como consequência do método utilizado
neste conflito, classificado por «guerra de guerrilha», a estratégia do IN era
esquivar-se ao contacto com as NT, optando por agir de surpresa, ora através de
emboscadas ora por via de ataques ao(s) Aquartelamento(s) e Destacamento(s),
realizados quase sempre à noite, recorrendo a armas pesadas [canhões sem recuo
e morteiros 82].
Entre 19 Março e 25 de Novembro de 1972
[o último naquele ano] o Aquartelamento foi atacado por oito vezes, A/D de Amedalai
duas e o Destacamento do Enxalé uma vez, equivalente a uma média de um ataque
por mês. Esta facilidade e a frequência com que o PAIGC passou a realizar,
naquela época, os seus ataques contra as NT aquarteladas no Xime, eram
resultado das condições objectivas de que dispunham, do ponto de vista da mobilidade,
uma vez que os seus efectivos destacados na Zona [no Poindom, no Baio, Rio
Buruntoni, na Ponta Luís Dias ou no Fiofioli], tinham total liberdade de
circulação, bem como da gestão de toda a sua logística incluindo, entre outras,
a construção de esconderijos para camuflagem do material pesado e o controlo da
população aí residente, conforme se dá conta no mapa 2.
3. - AS
ACÇÕES DO PAIGC QUE ANTECEDERAM O 1.º ANIVERSÁRIO
- Janeiro de 1973 – mês de mais recordações
Janeiro
de 1973 foi considerado um mês atípico, no contexto da CART 3494, pela relevância
que alguns episódios tiveram no seu quotidiano. Desde logo por tratar-se do
primeiro mês de um novo ano, aquele que poderia bem ser o do regresso… mas não
foi. Depois, porque em 27JAN1973 comemorava-se o 1.º Aniversário da presença do
seu contingente no Xime, encerrando-se este ciclo temporal de vivências no mato
com quatro baixas mortais [uma em combate e três por afogamento no Geba],
números que felizmente se mantiveram até final da comissão.
Em
complemento ao acima referido, os guerrilheiros do PAIGC em actividade na Zona
fizeram questão de contribuírem como mais alguns eventos, adicionando-lhes mais
três ataques ao Aquartelamento, respectivamente, em 17, 24 e 29.
Ainda
mais relevante foi o facto de em 20JAN1973, Amílcar Cabral, principal líder do
PAIGC, ter sido assassinado por dois membros do seu próprio partido, em
Conacri.
A História do BART 3873 a eles se refere nos
seguintes termos:
67. Inimigo
d) Subsector do Xime
- Nos dias 17
às 21H05, 24 às 18H38 e 29 às 19H40, o XIME sofreu
sucessivamente 03 flagelações, por grupos não calculados que empregaram canhão
S/R e morteiro 82. Não há a contar danos pessoais ou materiais em qualquer
delas.
e) Conclusões
- É arriscado concluir-se se as flagelações ao XIME a 24
e 29 são ou não resultado da directiva emanada dos elementos preponderantes do
Partido, reunidos em CONAKRI e referida no n.º 65, após a morte do seu
SECRETÁRIO-GERAL, no dia 20 do
corrente mês [pp 93-94].
3.1 – OS ATAQUES DE 24JAN1973
Em
24JAN1973, uma 4.ª feira, a actividade interna e a operacional estavam, como
sempre, a serem cumpridas de acordo com o programado. Por via da minha função
de «sargento de dia», naquela ocasião cabia-me responder pelas primeiras – as internas,
nomeadamente no controlo da distribuição de água pelos diferentes depósitos e
abrigos, refeições, distribuição de correio e postos de vigia, e outras tarefas
menores.
Por
volta da hora do almoço, uma mensagem era recebida no Centro de
Transmissões do Quartel do Xime, dando conta que um barco civil estava a ser
atacado pelo PAIGC, na confluência entre o Corubal e o Geba, flagelação
realizada da margem da Ponta Varela, mas sem consequências.
Mais
tarde, à hora habitual, ou seja, por volta das 18:30H, deslocámo-nos para o
refeitório dos praças [foto 4] com o objectivo de supervisionar a distribuição
do jantar, confeccionado pelos nossos mestres de restauração, o João Machado e o
João Torres. A ementa era sopa de [?] e «arroz de estilhaços», de uma vaca que
fora esquartejada no nosso centro de abate [foto 5].
Foto 4. Xime – 1972. Refeitório dos
praças.
Foto 5. Xime – 1972. Espaço entre o
refeitório e a cozinha [barraco de chapas], onde se fazia, de dois em dois
dias, o abate dos animais para a alimentação.
Iniciada
a refeição, e quando nada fazia prever, os discos de inox, com o arroz de
estilhaços no seu interior, transformaram-se em discos voadores circulando em
vários sentidos. Estávamos a ser atacados com armas ligeiras [kalashnikov’s],
para nosso espanto, ali tão perto [mapa 3], fazendo subir numa curta fracção de
tempo a adrenalina daquele colectivo.
Ao
grito inicial de «os gajos estão cá
dentro…», eis que nos transformámos em gazelas do mato [imagem simbólica]
saindo do refeitório, completamente desprotegidos, em direcção aos diferentes
abrigos para podermos comunicar na mesma linguagem – a militar.
Os
camaradas artilheiros do 20.º Pelotão de Artilharia, sedeado no Xime, fizeram
naquele contexto e uma vez mais o seu competente trabalho, ajudando-nos a
ultrapassar aqueles momentos muito especiais e de grande tensão.
Lentamente
as armas dos dois lados foram-se calando. Mas mais estava ainda para acontecer.
Algum tempo depois entrava em acção o habitual armamento pesado IN [canhão sem
recuo e morteiro 82] prolongando por mais quinze minutos o combate. Caladas definitivamente
as armas ligeiras e pesadas de ambos os lados, e sem consequências para as NT,
o alerta manteve-se até ao início da manhã seguinte, altura em que foi
efectuado o reconhecimento à zona a cargo do GComb de serviço.
Constatámos
que o arame farpado onde se tinham emboscado os guerrilheiros, não mais de
cinco, posicionados no enfiamento da padaria do Carlos Fialho [o nosso
especialista de panificação que nos servia, quando em serviço nocturno, uns
casqueiros saídos do forno besuntados com manteiga acompanhados de um balde de
água escura, vulgo café] estava cortado, existindo no terreno circunvolvente
muitas dezenas de invólucros das suas armas.
Foi também
localizado um guerrilheiro ferido com gravidade. Transportado para a enfermaria
aí foi tratado com toda a dignidade, até à sua evacuação para Bissau, pelo
meu/nosso camarada ex-Furriel Enfº. Carvalhido da Ponte. A certa altura
perguntei-lhe se queria comer? A sua resposta foi positiva. Trouxe-lhe, então,
uma terrina de batatas cozidas [o acompanhamento do almoço daquele dia] tendo
ingerido uma dúzia de metades, até que chegou o Heli e o levou para o Hospital
Militar.
Nunca
mais soubemos o que lhe aconteceu… morreu ou sobreviveu?
Foto 6. Xime – Jun/1972. O edifício
da imagem, da esqª/dtª, refere-se ao bar dos praças, arrecadação de géneros e à
enfermaria [porta + janela]. Na rectaguarda desta estava situado o refeitório
[foto 4].
As árvores à esquerda sinalizavam as
paragens obrigatórias pois serviam de sombra aos camaradas de outras unidades
que nos visitavam, nomeadamente aqueles que faziam segurança às colunas que se
deslocavam ao Cais, e que aproveitavam estas ocasiões para matar a sede…
Cinco
dias depois da tríade de ocorrências no mesmo dia, ou seja, em 29JAN1973, 2.ª
feira, por volta das 20:00H, um novo ataque ao Aquartelamento do Xime foi
perpetrado pelo PAIGC, agora sem a ousadia anterior, tendo recorrido somente à
utilização de armas pesadas: canhão sem recuo e morteiro 82, mas sem
consequências, uma vez que todas as granadas caíram no exterior do perímetro do
aquartelamento.
Ainda
na mesma semana, no sábado, em 03FEV1973, realizaria a minha última
missão/acção no Xime, ao participar na Operação «Guarida 18» [P219].
Nove
dias depois deste episódio, ou quinze dias após o último ataque, eis que em
12FEV1973, 2.ª feira, o quartel da CART 3494 voltaria a ser atacado durante os quinze
minutos da praxe com as mesmas armas pesadas: 2 canhões sem recuo e morteiros 82,
igualmente sem consequências, ficando este na história como o derradeiro ataque
contabilizado no período em que estivemos aquartelados no Xime.
"Clicar na imagem para ampliar"
Eis mais um
pequeno contributo historiográfico da presença do contingente da CART 3494 no
CTIGuiné.
Com um forte
abraço de amizade.
Jorge Araújo.
3JUL2015
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3 comentários:
Um bom trabalho. Um abraço amigo
António Bonito
Alguns dos eventos assinalados, fui forçado a participar ao vivo e a cores, por estar na ccaç 12, nomeadamente em 3 de fev de 73, em que o Jorge Araújo esteve frente a frente com um combatente IN.
Antonio Duarte
PS: comentário in facebook
Manuel Lino
Nesse dia fiz fogo de cobertura para as costas do IN e a escostá-los para as NT, com fogo orientado com o cmdt de companhia. Foi a cobertura mais perigosa que fiz com o meu óbus.
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