MSG de ex. Fur Milº Ranger Op/Esp. Jorge Alves Araújo CART 3494 com data/hora 091114AGO2012
Caríssimo Camarada Sousa
de Castro.
Os meus melhores
cumprimentos.
Serve o presente para
anexar uma narrativa dos acontecimentos relacionados com o Naufrágio de
10.Ago.1972, no Rio Geba, envolvendo alguns militares da CART 3494.
Através desta metodologia pretende-se transferir o conhecimento individual de
quem viveu de forma intensa aquele contexto, descrevendo-se um conjunto de
detalhes julgados pertinentes com o objectivo de se conceber a sua história,
agora que estão decorridos quarenta anos após esse acidente.
Ela é, ainda, mais uma
pequena contribuição que é disponibilizada à opinião pública, por meio deste
espaço plural de partilha, como é o blogue da Companhia, sobre as diferentes
ocorrências registadas durante o conflito militar no CTIG, em particular aquelas
que dizem respeito aos Fantasmas
do Xime.
Espero que esta nossa
terceira narrativa histórica tenha despertado em vós o interesse de produzirem
outros apontamentos, no sentido das novas gerações compreenderem melhor o que foi
o nosso passado, sobretudo o vivido na Guiné.
Obrigado pela atenção.
Um forte abraço para
todos.
Jorge Araújo.
Ex-Furriel Mil Op Esp/RANGER
CART 3494
Xime-Mansambo
1972/1974.
GUINÉ
Jorge
Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
O RIO GEBA E O MACARÉU
- O NAUFRÁGIO NO DIA
10.AGO.1972 -
I – O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10.AGO.1972
I – O NAUFRÁGIO NO RIO GEBA – 10.AGO.1972
No intervalo das duas emboscadas
sofridas pela CART 3494 na Ponta
Coli, local situado na estrada entre o Xime e Bambadinca, e já objecto de
narração anterior (Postes: 148 e 152), focalizamo-nos
hoje em mais um acontecimento que marcou a vida colectiva dos seus membros, em
particular daqueles que directamente nele estiveram envolvidos, e que ficou
conhecido, na história da Companhia e do Batalhão, como o «Naufrágio no Rio Geba».
E este episódio verificou-se exactamente
a meio dos dois acontecimentos anteriormente assinalados, contabilizando-se um
período de cento e onze dias entre cada um deles, o que é uma coincidência
interessante.
Durante alguns minutos vivemos entre a
água e o céu, entre a terra e o inferno, entre a vida e a morte, sendo que esta
última expressão/conceito viria a aplicar-se, lamentavelmente, a três dos
catorze militares que naquela 5ª feira, dia 10 de Agosto de 1972, faz hoje
quarenta anos, tinham por missão fazer a travessia entre as margens esquerda e
direita do Rio Geba, por esta ordem, com o objectivo operacional de sinalizar eventuais
vestígios deixados no terreno pelo IN, vulgo reconhecimento à zona
circunvolvente ao Destacamento de Mato Cão.
Curiosamente, nessa mesma data, foi
testemunhado o movimento de um meteoro, que se tornou conhecido como «A Grande Bola de Fogo Diurna de 1972»,
sobre as Montanhas Rochosas do Sudoeste dos EUA em direcção ao Canadá e que,
caso tivesse explodido (dizem os cientistas) seria semelhante à explosão de Hiroshima
(Bomba Atómica Little Boy), ocorrida em 03.Ago.1945, ou seja vinte e sete anos
antes, e que acabaria por estar ligada ao términus da II Guerra Mundial
concretizado oficialmente após a assinatura do armistício verificada em 02.Set.1945,
na Baía de Tóquio.
Entretanto, a travessia do Rio Geba, a
iniciar-se no Cais do Xime, seria feita com recurso a um bote de fibra de vidro
conhecido por «Sintex», com motor
fora de bordo de 50 cavalos, sendo sugerida, como elemento de segurança, que a
sua lotação não deveria ultrapassar a dezena de indivíduos, incluindo o
barqueiro.
Mexia Alves |
Mexia Alves (1972) |
Porém, tudo leva a crer que estamos
perante o mesmo bote que foi utilizado naquele dia 10 de Agosto, uma vez que o
ex-alferes Mexia Alves, ao ser nomeado CMDT do Pel. Caç. Nat. 52 algum tempo
depois, viria a ser colocado no Destacamento de Mato Cão, ficando este sob a
jurisdição do BART 3873, e, portanto, dependente do seu apoio logístico.
Com efeito, e porque ainda hoje
subsistem algumas dúvidas sobre como tudo aconteceu, nomeadamente causas e
efeitos das decisões tomadas pela linha de comando, este texto corresponde tão
só e apenas ao que ainda guardamos em memória deste tema (e ainda bem que o ser
humano tem memória), uma vez que também neste caso estivemos envolvidos até ao
tutano.
Procuramos, através da informação retida
e das muitas imagens ainda bem presentes, caracterizar cada elemento do todo
fenomenal, com o objectivo de acrescentar algo mais ao que já foi tornado
público em outras ocasiões, em particular no Blogue da CART 3494 (vidé: poste17 (10.fev.2009); poste 29 (22.mar.2009) e
poste 44 (12.nov.2009).
Tal como nos
depoimentos anteriores, o método utilizado assenta numa estrutura organizada cronologicamente
a partir de cada um dos diferentes momentos: o antes, o durante e o depois dos
factos.
II – O DIA 09 DE AGOSTO DE 1972
Tendo por cenário as ocorrências
contabilizadas durante a primeira emboscada sofrida pela CART 3494, através do
seu 4.º GComb, no dia 22.Abr.1972, levando-o a ficar inoperacional por algum
tempo, como consequência dos diferentes graus de enfermidade e de inferioridade
física de parte significativa dos seus elementos, foi decidido superiormente
que transitaríamos de imediato para o 1.º pelotão, em virtude deste GComb estar
desfalcado de quadros de comando.
Esta transferência, que no início tinha
carácter provisório acabaria por ser definitiva, pelo que nos mantivemos neste
pelotão até ao final da comissão de serviço no CTIG, justificada, em certa medida,
pela transferência do seu oficial adstrito (ex-alferes Carneiro) para uma C.
Caç, e que, por motivos que desconhecemos, não viria a ser rendido.
Assim, em conformidade com o plano das
acções/missões atribuídas a cada pelotão, o dia 09 de Agosto de 1972 foi
passado no cumprimento das diferentes tarefas logísticas internas como sejam a
limpeza, recolha e abastecimento de água pelos diferentes abrigos e outros
serviços de manutenção ao aquartelamento, sob a orientação operacional dos três
furriéis do grupo: Godinho, Ferreira e eu próprio.
Concluídas as diferentes missões, o
restante tempo que faltava para encerrar o dia foi utilizado no jantar, na
messe, e depois recolhemos ao nosso «T0», procurando recuperar energias para o
dia seguinte, já que a missão atribuída na escala era de «intervenção», desconhecendo-se, naquele momento, o que estava previsto
ou pensado para esse efeito.
Já na posição horizontal, recebendo o ar
fresco da ventoinha suspensa na estrutura da cabeceira da cama, eis que entra
no quarto o ex-furriel Ferreira, com ar de poucos amigos, contando que tinha
sido chamado ao Gabinete do CMDT da Companhia, ex-Cap. António José Pereira da Costa,
líder da CART 3494 desde 22.Jun.1972, recebendo instruções para preparar a sua
secção (Bazuca) reforçada com mais alguns elementos do pelotão, com o objectivo
de no dia seguinte, de manhã, participar num patrulhamento a efectuar na margem
direita do Rio Geba, estando prevista a inclusão, na acção, do Major de
Operações do BART 3873, ex-Major de Art. Henrique Jales Moreira.
Perante os sinais de ansiedade
transmitidos em cada frase emitida e o nervosismo sentido em cada movimento
corporal, logo o questionámos – eu e o Godinho – o que se passa contigo?
A resposta não foi imediata. Mas, depois
de alguma insistência, afirmou sentir-se um pouco em baixa de forma. Perguntei-lhe
se queria que eu fosse no seu lugar. A sua resposta foi afirmativa, deixando
cair, então, um grande fardo que tinha sobre os seus ombros.
Seria que estava a adivinhar ou a
persentir algo negativo?
III – O DIA 10 DE AGOSTO DE 1972 – o
naufrágio no Rio Geba
As actividades militares do dia em
referência foram iniciadas com a concentração vs organização dos militares
destacados para a acção identificada no dia anterior, grupo constituído por
nove praças devidamente equipados para a missão, por mim próprio, a quem tinha
sido entregue um rádio de transmissões AVP1, a que se juntou, no Cais do Xime,
o CMDT da Companhia, ex-Cap. Pereira da Costa, o ex-Alferes Guimarães, em
situação de Estágio Operacional e o ex-Major de Operações Henrique Jales
Moreira, totalizando treze elementos.
A este número faltava adicionar, ainda,
o barqueiro do Sintex, perfazendo
então um universo de catorze militares a transportar no bote que, como referido
no ponto I, era aconselhada uma lotação máxima de dez indivíduos.
Depois de percorridas algumas dezenas de
metros, verificou-se que o plano de água não permitia o avanço da embarcação,
uma vez que a hélice do motor batia no fundo do rio, pois estávamos ainda na
situação de baixa-mar, pelo que era necessário aguardar pela passagem do «macaréu». Por isso regressámos ao local
da partida, dando por concluída a primeira tentativa da travessia do Geba.
Uma vez que o Aquartelamento distava do
cais entre 250/300 metros, e a nossa presença não era necessária naquele
contexto, decidimos ali regressar. Quando estávamos já no seu interior, muito
perto da parada, depois de ultrapassada a porta de armas original, cujo modelo
ou patente julgamos não ter sido registada, ouvimos um sinal sonoro no nosso
rádio AVP1, que atendemos. O conteúdo da informação recebida dava conta da
passagem do «macaréu», pelo que se
solicitava a presença de todos os militares no cais, para dar-se início a nova
viagem.
Contudo, foi com algum espanto e muita
perplexidade que recebemos a notícia da passagem do «macaréu», na medida em que conhecíamos mais ou menos bem a sua
evolução no processo de enchimento da maré, devido à situação de proximidade
com o rio, facto que suscitou em nós, desde o início, uma natural curiosidade
pela observação deste fenómeno da natureza.
E o que é o fenómeno «macaréu»?
Guiné - Rio Geba, Xime. O Macaréu (Foto de David Guimarães ex. Fur. Milº Cart 2714 (Xitole) 2001 |
Este fenómeno das marés, que dá origem à
elevação do nível das águas oceânicas, faz com as mesmas invadam a foz dos
rios, podendo formar ondas até dezenas de metros de largura, com três a cinco
metros de altura, atingindo uma velocidade entre trinta e cinquenta quilómetros
por hora. Esta poderosa massa de água que se transforma em onda pode durar
entre quinze minutos e uma hora.
Para além do Rio Geba, este fenómeno é
observado em vários pontos dos cinco continentes, nomeadamente no Brasil, na
foz do rio Amazonas e afluentes do litoral paraense e amapaense, como sejam os
rios Araguari, Maicaré, Guamá, Capim e Moju, e na foz do rio Mearim, no
Maranhão.
Nessa região amazónica, esse fenómeno é
designado por «pororoca», «mupororoca» ou «macaréu». Porém, outras designações são atribuídas ao mesmo
fenómeno, com diferentes escalas, observado em diferentes rios do mundo, de que
é exemplo o caso de Inglaterra, na foz dos rios Severn, Tamisa e Trent,
conhecido por «bore».
Eis algumas imagens de cada um dos
diferentes fenómenos.
Macaréu subindo o rio de Hangzhou, na China, denominado em chinês como trovão |
Macaréu subindo rio Amazonas, Brasil |
Macaréu subindo o rio Severn, Inglaterra |
De regresso ao cais, as dúvidas
suscitadas inicialmente quanto à oportunidade de dar-se início à travessia não
se dissiparam, antes pelo contrário, elas ampliaram-se em função da qualidade
de agitação da água do rio. Esta nossa avaliação era coincidente com a do Cabo
Silva (um militar da marinha, que durante mais de duas décadas, viveu as
experiências das diferentes marés por onde andou, por ter estado ligado às
actividades dos submarinos) e que naquela ocasião se encontrava no cais,
dirigindo os trabalhos de carregamento de madeiras para a embarcação civil
«CP10».
Esta conclusão resultou do facto de ter
escutado a parte final da conversa havida entre aquele militar e o Major de
Operações, em que o primeiro tentou convencer o segundo a não se fazer à água
naquele momento, aconselhando-o a aguardar mais algum tempo de modo a diminuir
o risco de um eventual acidente, mas sem sucesso.
O sentido da navegação corresponde
igualmente à da imagem apresentada, sendo a margem esquerda aquela que se
encontra à direita e a margem direita a que se encontra à esquerda.
Demos, então, início à segunda tentativa
da travessia do Rio Geba.
Com a navegação a cargo do barqueiro,
com o motor em funcionamento e com as águas muito agitadas, certamente que cada
um de nós se interrogou quanto ao sucesso da «aventura» em que tínhamos
embarcado e que não tinha hipóteses de retrocesso.
Logo nas primeiras dezenas de metros, os
“palpites” começaram-se a escutar, na medida em que a embarcação não podia
tomar o rumo certo. Uma ordem foi escutada: “desligue-se o motor”, o que foi
acatado pelo barqueiro. Mas, mesmo assim, dava a sensação de que o bote
continuava com o motor ligado, tal era a velocidade com que o mesmo deslizava
naquelas águas revoltas.
O pânico subia à medida que a embarcação
se aproximava da cabeça do «macaréu»,
cada vez com mais agitação e remoinhos à mistura. Naquele momento, um novo
conceito surgiu no léxico dos militares, particularmente nas praças, que
traduzia o sentimento que estavam a viver, ou seja “eu não sei nadar”, no princípio
entredentes e depois mais audíveis e expressivos.
O cenário começava, então, a ficar
cinzento, diria mesmo muito cinzento no sentido da cor negra, independentemente
de estar um dia óptimo, cheio de sol e com a temperatura ambiente a aumentar.
A pergunta filosófica que, certamente,
cada um formulou para si, era a de saber como poderíamos sair daquele imbróglio,
sãos e salvos?
Entretanto, uma nova ordem foi dada,
visando criar algumas réstias de esperança quanto à possibilidade de
sobrevivência colectiva, apontando para uma “navegação o mais perto possível da
margem esquerda”, ou seja, a mesma donde partíramos.
Quando nos encontrávamos a cerca de
quatro/cinco metros do tarrafo – zona de lodo ainda não submersa, e onde
habitualmente a comunidade de crocodilos (alfaiates) se organiza em frisa
apanhando os seus banhos de sol – eis que se escuta uma nova ordem: “haja um
que salte para o tarrafo levando consigo as correntes do bote com o objectivo
de o poder suster”.
Olhando à minha volta, e perante a ausência
de candidatos e/ou voluntários disponíveis para o cumprimento deste desiderato,
eis que tomámos em mãos esse desafio. Porque a embarcação continuava instável
face à movimentação das águas, o salto só poderia acontecer quando a distância
entre o bote e a lodo fosse de molde a facilitar a operação proposta.
Não sendo possível identificar o melhor
momento para o salto, eis que no tempo «X» saltámos levando nas mãos a dita
corrente já referida anteriormente. Durante o salto, feito de frente para o
tarrafo, ouvimos, vindo da nossa rectaguarda, um ruído provocado pelo embate da
proa do bote na parte mais alta do lodo, tendo como consequência a inclinação
do mesmo projectando para a água todos os seus ocupantes, primeiro os que se
encontravam no lado esquerdo da embarcação e depois os do lado direito, por
efeito do desequilíbrio de peso que entretanto ocorrera (lei da física).
Quanto a nós e na sequência do salto,
ficámos de imediato enterrados no lodo até aos joelhos, procurando, mesmo
assim, manter o controlo da embarcação através do uso da sua corrente, mas não
por muito tempo. Face à diminuição da nossa resistência por via da força da
maré, que nos conseguiu arrancar ao lodo arrastando-nos num espaço de alguns
metros quase até à posição de «pino», não tivemos outra alternativa senão
deixar o bote entrar à deriva.
Como podem imaginar todo esta descrição
corresponde a uma fracção de tempo diminuto entre alguns segundos e poucos minutos,
mas que no terreno mais parece uma eternidade.
Entretanto, na água, a luta era
extremamente desigual entre o poder do homem e o poder da maré. Cada um dos
militares, equipados e vestidos com os seus camuflados que lhes dificultava a
mobilidade dentro de água, procuravam chegar a terra firme o mais rapidamente
possível, pondo-se a salvo. E isso aconteceu a oito de um total de catorzes
elementos.
Dos seis em falta, três conseguiram
entrar no bote: o barqueiro (nome que desconhecemos, pois era elemento da CCS),
o Miranda (1.º cabo de dilagramas) que remando com a sua sacola das granadas
permitiu recolher o ex-Major de Operações Jales Moreira em situação muito difícil.
E os três seguiram ao sabor da corrente na direcção de Bambadinca, local onde
estava sediado o Batalhão.
Sol. Manuel Salgado Antunes |
Para além de não se ter concretizado a
travessia, de o grupo ter ficado fraccionado e com baixas, de termos ficado
desarmados e sem meios de comunicar com a nossa Companhia, tínhamos ainda pela
frente um longo caminho a percorrer até chegarmos ao nosso Aquartelamento, no
Xime.
Assim, os oito elementos que estavam
aparentemente a salvo, mas ainda dentro de água tentando localizar alguma das
armas perdidas, tinham ainda pela frente um osso difícil de roer, passe a
imagem metafórica, uma vez que faltava transpor o obstáculo «tarrafo» até
chegar a terra mais sólida.
E a primeira dificuldade com que nos
deparámos tinha a ver com a necessidade de percorrer cerca de quinze metros de
lodo extremamente mole, num momento em que as águas continuavam a subir a um
ritmo veloz, e em que o movimento de elevação de cada perna, correspondente a
cada passo, era sempre maior que o anterior, fazendo lembrar que estávamos
perante um contexto de areia movediça.
Após os primeiros passos, não nos
restava outra alternativa senão tentar nadar no lodo, agora cada qual em tronco
nu mas com os seus objectos sob controlo (roupa, cinturão e carregadores). Na
sequência de cada braçada, esses objectos eram arremessados para a frente, para
depois se efectuar nova braçada e novo arremesso. Todo o nosso corpo era lodo:
o cabelo, o rosto, a boca, os membros, etc., etc., etc..
Para percorrer os tais quinze metros de
tarrafo, aproximadamente, foram gastos cerca de vinte e cinco minutos, o que
diz bem das dificuldades sentidas. A meio da viagem, por efeito de estar
verdadeiramente exausto, pensei que já não seria capaz de ali sair. A força e a
energia tinham-se esgotado.
Depois de um curto descanso a pedido do
corpo e da mente, aconteceu um novo impulso antes da última transcendência (a
morte), conseguindo então chegar ao fim da linha. Espalhados ao longo do lodo encontravam-se
ainda os meus sete camaradas, cada um lutando para ultrapassar as suas
dificuldades.
Fazendo uso da faca de mato, que
usávamos presa ao cinturão, procedemos ao corte de alguns troncos dos arbustos
existentes na zona, arremessando-os na sua direcção, visando facilitar a
mobilidade nos últimos metros da tortura. Os pequenos troncos, porque foram
colocados entre os corpos e o tarrafo, funcionando como estrado, acabariam por
provocar ligeiros ferimentos, particularmente no peito e zona abdominal, devido
às suas saliências.
Bolanha |
Avançámos de forma empírica corrigindo a
direcção por simpatia, sabendo-se, no entanto, que aquela zona estava sob
controlo das NT, e que provavelmente estávamos em presença da bolanha de
Nhabijões, o que se veio a confirmar depois.
Durante a caminhada, sob um sol
abrasador e com uma temperatura a rondar os 35/40 graus (a estação da época era
a das chuvas), a resistência de cada um de nós voltou a ser, uma vez mais,
posta à prova, concluindo-se que o humano não conhece os seus limites. A
exaustão e a desidratação eram compensadas com um mergulho na bolanha a cada dez
metros, distância suficiente para fazer secar os corpos e a roupa.
Passado algum tempo não cronometrado - esse
detalhe não era importante naquela situação - avistámos ao longe umas chapas de
zinco brilhando por efeito do sol, tendo seguido nessa rota. Estávamos então
nas traseiras da Tabanca de Nhabijões. Aí chegados, impunha-se conquistar uma
merecida sombra e a ingestão de líquidos e de alguns alimentos. Mas há falta de
recursos, bebemos água e eu comi uma lata de salada de frutas de conserva que
jamais esquecerei.
O CMDT do pelotão aí residente estranhou
a nossa presença, pois não sabia do que nos tinha acontecido. E foi a partir
desse momento que sinalizámos a nossa existência na rede de comando,
solicitando uma viatura para nos transportar até ao Xime, onde chegámos a meio
da tarde.
À chegada, foi-nos confirmado o
desaparecimento dos três camaradas anteriormente referenciados, bem como a
ancoragem do Sintex no Cais de Bambadinca transportando os três elementos que
nele entraram para uma viagem única em que foi aproveitada a força da maré.
Entretanto, e porque o ex-Major de
Operações Jales Moreira foi o primeiro a dar a notícia da ocorrência, logo se
providenciou no sentido de se mobilizarem os meios operacionais, nomeadamente a
partir dos recursos humanos da CART 3494.
Sob o comando do ex-Cap. Pereira da Costa foi encetado um novo patrulhamento
com maior incidência na zona do naufrágio, visando encontrar os corpos dos
militares afogados, mas sem sucesso. Esta acção contou com o apoio de meios
aéreos.
O regresso ao Xime aconteceu já de
noite.
IV – CAUSAS/EFEITOS DO NAUFRÁGIO
O dia seguinte foi vivido, por todos,
sob o efeito das diferentes ocorrências do dia anterior, todas elas
contribuindo para um estado de espírito francamente negativo, em particular pela
perda, de uma assentada, de três membros do nosso grupo, num acidente
inquestionavelmente estúpido, como são todos aqueles que poderiam ser evitados.
Deste modo, a angústia e a ansiedade dominaram este e os dias seguintes,
desenvolvendo-se a crença e/ou a expectativa dos corpos dos desaparecidos
poderem ser recuperados.
Essa crença e/ou expectativa apenas se
concretizou uma vez, lamentavelmente.
Cais do Xime AGO72 |
Campa de José M. S. Sousa em Bambadinca |
Durante mais alguns dias, todos os
olhares estiveram direccionados para o Rio Geba, esperando que ele nos
devolvesse os restantes corpos, mas em vão.
Entretanto, devido a ter-se verificado
mortes e desaparecido material de guerra, foi decidido pelo CMDT do Batalhão
3873, ex-Tenente-Coronel Tiago Martins (que já não está entre nós) a abertura
de um Auto de Averiguações, que decorreu durante os primeiros meses, tendo sido
consultados/inquiridos os militares envolvidos neste acidente.
Treze meses depois do naufrágio –
Setembro de 1973 – fomos convocados para comparecer no Tribunal Militar
Territorial, em Bissau, para participar no acto de julgamento do processo,
tendo como Réu o ex-Major Henrique Jales Moreira, e na qualidade de testemunhas
oculares, eu próprio e o 1.º Cabo Miranda.
Tratou-se de uma nova aventura e de uma
grande experiência que não gostaríamos de repetir, em função do ambiente em que
decorreu.
O veredicto final do Tribunal determinou
a absolvição do Réu.
Por último, resta-nos referir que esta
nova história que ousei narrar sobre um tema sensível no contexto da CART 3494
/ BART 3873, escrita na primeira pessoa e que agora vos dei a conhecer,
ocorrida durante o projecto militar desenvolvido no CTIGuiné (1972/1974),
ficará gravada indelevelmente para sempre na minha história de vida, na medida
em que é difícil fazer-se o seu «luto».
Em cada um dos diferentes momentos foi
possível retirar lições de vida, ajudando-nos a melhor compreender os
desempenhos socioculturais e sociopolíticos do ser humano.
Assim, deixo à consideração de cada um
dos leitores a competente avaliação do valor do escrito e das lições que dele
julguem poder retirar.
Um grande abraço para todos, e até à
próxima história.
Jorge Araújo.
Agosto/2012