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sábado, 28 de fevereiro de 2015

P231 - Histórias de vida de Portugueses na Guiné (Jorge Araújo)


Palácio do Governador - Bissau 1972
Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Os meus melhores cumprimentos.
Os recentes postes publicados no blogue da «Tabanca Grande», a propósito da Revista “Turismo”, de 1956 e da morte do nosso camarada Amadú Bailo Djaló (1940-2015), ocorrida no passado dia 15 do crt., no Hospital Militar, em Lisboa, levaram-me a nova viagem pelas memórias da nossa presença no CTIG, nos já distantes anos de 1972/1973.
Dessa viagem ao passado, escrevi mais uma narrativa histórica, que anexo, para os devidos efeitos.
Obrigado.
Um forte abraço e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.

27Fev2015.

GUINÉ
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo, 1972/1974)
HISTORIOGRAFIA DA PRESENÇA PORTUGUESA NA GUINÉ
- O CASO DA EMPRESA NUNES & IRMÃO, LDA. -
[GENTIL E ARTUR NUNES]

1INTRODUÇÃO

Tenho vindo a acompanhar com alguma curiosidade, no blogue de «luisgraça&camaradasdaguiné», a publicação de diversos postes da autoria do camarada ex-Alf Mil Trms CCS/BAC 3872 (Galomaro) Mário Vasconcelos [1.º-P14164-LG], estruturados a partir do conteúdo da Revista “Turismo” n.º 2, de Jan-Fev/1956, onde estão anunciadas algumas das casas comerciais existentes, naquela época, na então província portuguesa da Guiné.

Entretanto, a recente morte, ocorrida em 15FEV no Hospital Militar de Lisboa, do nosso camarada guineense Amadú Bailo DJaló (1940-2015), nascido no mesmo dia que eu, mas uma década antes [10NOV], levou-me a fazer nova consulta ao baú de memórias e imagens, recuando a 1973 – ano em que Amadú DJaló foi graduado em Alferes [28JUN] e condecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3.ª Classe, pelo seu comportamento em acções de combate.

É de relevar, também, que este guineense português é transferido para a 15.ª CCmds, em
julho de 1969, seguindo-se a 1.ª CCmds Africanos, o BCmds da Guiné e a CCAÇ 21, sediada em Bambadinca, ao tempo do nosso BART 3873, até ao 25 de Abril de 1974.

Ao recorrer a este elemento de certificação histórica, para recordar a sua Companhia de Comandos Africanos em desfile militar, em Bissau, quisemos-lhe prestar uma singela homenagem [P14284-LG], uma vez que a ele tinha assistido [desfile] dias antes do início, no Tribunal Militar Territorial [7DEC1973], do Julgamento relacionado com o «Naufrágio no Rio Geba de 10AGO1972» [P159 + P211], sendo, por isso, pertinente que o considere no âmbito do programa das comemorações do 1.º de Dezembro desse ano.

De referir, ainda, que Amadú Bailo DJaló, que era natural de Bafatá, é autor do livro «GUINEENSE COMANDO PORTUGUÊS», editado em 2010 pela Associação de Comandos, onde relata acontecimentos por si vividos durante os anos que durou o conflito. Ao ser incorporado em 1962, teve a oportunidade de percorrer todo o território do CTIG onde se combatia, deixando escritas, para memória futura, as suas muitas experiências e histórias contabilizadas ao serviço do Exército Português.  

De uma dezena de fotos guardadas desse evento de 1973, reproduzimos metade relacionando-as com os parágrafos anteriores, e que no seu conjunto servem para legitimar o título desta narrativa.

2AS FOTOS SELECCIONADAS

3A BISSAU DOS ANOS 50, QUE EU CONHECI (MÁRIO DIAS)

A propósito da interrogação suscitada pela ausência de referências na Revista “Turismo” à empresa Nunes & Irmão [foto acima], e na procura de resposta[s] a esta curiosidade em saber o que esteve na sua génese e qual a origem destes compatriotas lusos, realizei, com algum sucesso, uma pequena investigação cujos resultados partilho agora convosco.

A primeira fonte consultada, como não podia deixar de ser, pelo extraordinário espólio histórico que disponibiliza numa vasta panóplia de temas, foi o blogue da «Tabanca Grande» [luisgraça&camaradasdaguiné], onde o camarada Mário Dias [ex-sargento comando e instruendo no 1.º CSM realizado em Bissau, em 1959 – P2343-LG] nos caracteriza sumariamente a Bissau dos Anos 50 [P2691-LG].

Com efeito, a firma Nunes & Irmão e as suas instalações sede [edifício da foto 5] são identificadas por Mário Dias na foto abaixo pelo telhado. De referir, que entre as duas fotos [4 e 5] existe uma diferença temporal de duas décadas.

  4HISTÓRIAS DE VIDAS PORTUGUESAS NUM POBRE PARAÍSO
Uma segunda fonte de informação, e que acabou por esclarecer as questões de partida, foi obtida por via de uma reportagem realizada por jornalista (?) do matutino Correio da Manhã, publicada em 15 de março de 2009 [há seis anos], com o título abaixo repetido [www.cmjornal.xl.pt].
A reportagem faz a ponte entre o antes e o depois da independência da Guiné-Bissau, onde se afirma que os portugueses “chegaram há muitos anos e resistiram a todos os conflitos nesta antiga colónia portuguesa. Aconteça o que acontecer, nada os fará regressar a Portugal. Insurgem-se até contra a imagem exterior da terra que adoptaram. Para estes portugueses, a Guiné-Bissau, país entre os dez mais pobres do mundo, é um pedaço do paraíso na Terra”.
Quanto à história de vida da família Nunes, fundadora da firma Nunes & Irmão e, depois, da Residencial Coimbra, os testemunhos foram divulgados na entrevista dada por Francelina Nunes, nora de Gentil Nunes. Este e o seu irmão Artur Nunes acabariam por criar a sua primeira empresa nos anos vinte do século passado.
Transcrevemos, na íntegra e com a devida vénia, o que está escrito sobre a história de vida desta família de portugueses.
“Francelina Nunes, 64 anos, [1945-] deixou Góis, em Coimbra, em 1964, com apenas 19 anos, para juntar-se ao marido, repetindo um trajecto iniciado pelo sogro, Gentil Nunes, e o irmão, Artur Nunes, nos primeiros anos do século XX. Em 1920, depois de trabalharem na mais famosa empresa do País naqueles anos, a Casa Gouveia, conseguiram juntar um pé-de-meia que lhes permitisse criar uma empresa.
Assim nasceu a Nunes & Irmão, uma imagem de marca da Guiné com rosto luso. A residencial Coimbra é a face mais visível deste projecto empresarial, com 86 anos de vida. "Somos a terceira geração da família à frente dos negócios", diz Francelina Nunes, muito longe de se arrepender de, há 44 anos, ter deixado Portugal. "Foi fácil gostar da Guiné porque, quando cheguei, Bissau era uma cidade viva e o clima era óptimo.
Nestes anos todos, a única tragédia foi a guerra de 1998, entre Nino Vieira e Ansumane Mané. A guerra colonial era feita longe daqui, no campo, esta aconteceu mesmo na cidade. E foi horrível".
Francelina surpreendeu-se com a sua própria coragem, entre os escombros de Bissau, quando empreendeu acções merecedoras da condecoração do então Presidente da República, Jorge Sampaio: "Tivemos muita gente refugiada em nossa casa e, talvez por isso, o Presidente tenha decidido condecorar-me. Se nunca passámos fome foi porque tivemos ajuda humanitária. As organizações sabiam que havia muita gente aqui e ajudavam-nos".
Habituada a ver portugueses chegarem a Bissau, Francelina garante que há uma excelente relação entre os nacionais e os forasteiros. "Quase todos os portugueses que vêm para cá fazem-no no âmbito de projectos e chegam com vontade de ajudar este povo. Converso com muitos, que se hospedam no nosso hotel, e nunca vi nenhum muito contrariado por aqui estar. A verdade é que também não se metem na vida política local".
Francelina diz que a imagem que a comunidade internacional tem da Guiné-Bissau é distorcida: "Sabemos que isto não é um mar de rosas, mas passam imagens tristes do país. Mesmo na Europa, a vida não está fácil. Se um europeu não tiver um bom ordenado e uma vidinha organizada, também passa por dificuldades. Bissau enfrenta problemas com a luz e a água, mas em matéria de alimentação, móveis e bens de primeira necessidade, não falta nada. Não se formam filas em lado nenhum, tudo pode ser comprado. A Guiné não é um país pobre. Pobres são aqueles que nem têm uma folhinha verde".
Francelina não pára o novelo cor-de-rosa que desenrola sobre o país de adopção. "Pode haver um ou outro roubo de telemóvel, mas aqui não acontece nada de especial. O problema aqui é a instabilidade política. Há sempre um golpe ou outro problema parecido e isso contribui para que os brancos sintam medo".
O amor de Francelina Nunes pela Guiné é secundado por Alexandre ‘Xia’ Nunes, 40 anos [1969-], um dos dois filhos de Francelina e extremamente popular na cidade. Tanto ele como o irmão, Miguel, 44 anos [1973-], nasceram na Guiné-Bissau, embora os estudos tenham sido feitos em Portugal. Em 1990 optaram pelo país de origem. "Estudei em Coimbra até ao 2.º ano de Informática, mas decidi regressar. Durante 12 anos de escolaridade, estudei sempre com a ideia de voltar à Guiné e não estou nada arrependido. A vida na Europa é muito cansativa, há demasiado stress. Tenho lá muitos amigos e percebo que a vida deles não é nada fácil". ‘Xia’ defende que a Guiné é um país de oportunidades, à espera da estabilidade política.
"Em Portugal pensam que isto é o fim do mundo, é uma ideia transmitida às pessoas que não corresponde à realidade. Não devem ser as coisas fúteis, como cinemas e centros comerciais, motivos de escolha de uma terra".
Na opinião deste luso-descendente, os guineenses são os mais hospitaleiros entre todos os naturais dos países africanos de expressão portuguesa. Só a instabilidade política trava o arranque definitivo do desenvolvimento do país. "Cada vez que há uma situação como esta, que redundou nos assassínios de Nino Vieira e Tagmé na Waié [no início deste mês], os investimentos estrangeiros deixam de ser feitos e volta tudo à estaca zero. É chato um governo estabelecer contractos com a Guiné-Bissau e de repente cair tudo por terra porque houve uma mudança de dirigentes, em apenas três ou quatro meses. Assim é difícil, mas acredito que a Guiné-Bissau tem condições para evoluir".
‘Xia’ Nunes reconhece, no entanto, que há dois pólos de desenvolvimento que devem merecer atenção especial, para atrair estrangeiros: "O principal problema é a falta de escolas e hospitais. Qualquer pessoa que venha trabalhar para aqui quer ter os filhos consigo. Tem de haver escolas e serem complementadas com uma boa política de saúde. Não há necessidade de, por tudo e por nada, às vezes coisas mínimas, se ter de transportar um doente para Dakar ou Lisboa. Por que razão hei-de estar aqui e ter os filhos em Coimbra?".
Quanto à Residencial Coimbra, esta localiza-se no centro da cidade de Bissau, junto à Catedral de Bissau, sobre a firma Nunes & Irmão, Lda. [foto 5]. Compõe-se de 16 quartos amplos, equipados com casa de banho privativa, duche, água quente, água e luz, ar condicionado, cofre, mini bar, tv, video e dvd. Quartos duplos e quartos simples, alguns voltados para a Avenida Amílcar Cabral [antiga Avenida da República], outros voltados para um terraço tropical interior. Dispõe, ainda, de sala de pequenos-almoços, ampla, voltada para a avenida principal e de uma sala de convívio com bar, mesa de jogos, internet, tv e um amplo terraço para lazer e repouso. 
5FOTO-GALERIA DA RESIDENCIAL COIMBRA


Depois da triangulação entre três temas e algumas fotos, resta-me terminar citando o que é habitual dizer-se nas tertúlias: “as conversas são como as cerejas…” isto é, encadeiam-se umas nas outras, o mesmo acontece com a escrita… é difícil parar.

 

Obrigado.

Um forte abraço, com amizade, do

Jorge Araújo.

27Fev2015.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

P229 - ATAQUE AO XIME EM 16SET1972 – CART 3494 (ENTRE TROVÕES, RAIOS, GOLOS E BOMBAS) Jorge Araújo

Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Os meus melhores cumprimentos.
Como sabes, foram muitos os ataques perpetrados pelo PAIGC ao Aquartelamento do Xime [margem esquerda do Geba], durante os treze meses em que a CART 3494 aí esteve instalada, quase todos eles com armas pesadas e, maioritariamente, à noite, como aqui já ficou expresso em textos anteriores.
Por isso, a temática da narrativa que hoje anexo não será diferente. O que é diferente é o enquadramento em que o mesmo se desenvolve, mesmo sabendo-se que o contexto militar está no centro dos factos, mas não é o único, como o título do trabalho sugere. É uma mescla de acontecimentos… que geraram novas emoções que convém recordar.
É, pois, esse o objectivo do que se apresenta de imediato.
Obrigado.
Um forte abraço e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.


06Fev2015.

GUINÉ
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo, 1972/1974)
ATAQUE AO XIME EM 16SET1972 – CART 3494
(ENTRE TROVÕES, RAIOS, GOLOS E BOMBAS)
- mescla de acontecimentos… e novas emoções para recordar -

1O AQUARTELAMENTO DO XIME
A funcionar como tampão de segurança ao tráfego rodoviário que circulava no troço «Xime-Bambadinca-Xime» e ao marítimo [Rio Geba] «Xime-Bissau-Xime», as várias gerações de ex-combatentes que cumpriram a sua missão ultramarina neste Aquartelamento sabem bem das dificuldades por que tiveram de passar. Algumas delas transformando-se em calvário permanente, pelas adversidades e desgostos produzidos, outras deixando marcas físicas e psicológicas insupríveis para o resto das suas vidas.
Convém recordar que a complexidade da missão acima descrita se agravou a partir do momento em que o efectivo da CART 1746 [1 GComb], comandado pelo Alf. Mil. João Guerra da Mata, instalados no Destacamento da Ponta do Inglês, recebeu ordens para o abandonarem regressando à sua CART, no Xime, de que era CMDT o Capitão António Vaz, com o acto a ocorrer em 7/8 de Outubro de 1968. Acredita-se que essa decisão foi da iniciativa do então Brigadeiro António de Spínola [1910-1996] como consequência da redistribuição das NT no terreno [P10009-LG].
Entretanto, vários têm sido os testemunhos insuspeitos aqui narrados sobre esse contexto, todos eles de sentido único e de absoluta concordância com o acima exposto, independentemente dos tempos em que tiveram lugar as ocorrências, dos seus actores ou das unidades militares envolvidas.
Destaco, tão-somente, dois exemplos ou duas imagens metafóricas de grande significado: a primeira da autoria do camarada Luís Graça “Xime: uma descida aos infernos” [P1317/8-LG], a segunda do camarada Beja Santos O Xime, sem ferro mas com fogo…” [P2810-LG], ambos meus antecessores e, também eles, frequentadores assíduos daqueles circuitos pedestres.
Pelo Aquartelamento do Xime passaram, então, a CCAÇ 1550 [1966/68], a CART 1746 [1968/69], a CART 2520 [1969/70], a CART 2715 [1970/71], a CART 3494 [1972/73] e a CCAÇ 12 [1973/74].
No que à Companhia de Artilharia 3494 [CART 3494] diz respeito, a terceira e última unidade operacional do contingente do BART 3873, sediado em Bambadinca, a sua chegada ao Xime verificou-se em 28JAN1972, 6.ª feira. Durante os treze meses contabilizados pela Companhia neste Aquartelamento [margem esquerda do Geba], muitas foram as flagelações que sofremos, quase todas elas com armas pesadas e, maioritariamente, à noite.
O primeiro destes ataques ocorreu em 19MAR1972, domingo, cinco dias após concluída a sobreposição com a CART 2715, e o seu início verificou-se por volta das 23:00 horas, com uma duração superior a meia hora.
Esta facilidade, e a frequência com que o PAIGC passou a realizar os seus ataques contra as NT aquarteladas no Xime, foi consequência do abandono da Ponta do Inglês, uma vez que a partir desse momento estavam/ficaram criadas todas as condições objectivas para a total circulação em liberdade dos efectivos destacados na Zona [no Poindom, no Baio, Rio Buruntoni, na Ponta Luís Dias ou no Fiofioli], bem como da gestão de toda a sua logística incluindo, entre outras, a construção de esconderijos para camuflagem do material pesado e o controlo da população aí residente.
 Como se identifica no mapa abaixo, o território a sul do Xime até à mata do Fiofioli [margem direita do Corubal] estava completamente liberto e sem controlo das NT, independentemente da actividade operacional diversificada que por lá realizávamos com regularidade, umas vezes mais curta outras mais distante ou prolongada no tempo, mas quase sempre para o “empate” [digo eu!]. Porém, o sentido destas acções não deixavam de contribuir para o aumento do consumo energético humano, com deficit de recuperação acumulado pelas sucessivas missões, corolário do trabalho físico [caminhadas intermitentes com obstáculos] e mental [concentração elevada, ansiedade e stress].

  2 – XIME - 16 DE SETEMBRO DE 1972 - SÁBADO
Os pontos principais da presente narrativa, tal com tem acontecido com as anteriores de teor semelhante aqui divulgadas, emergem das vivências do contexto da nossa missão ultramarina. Cada um deles pretende ser um testemunho singular que, em interacção com os outros, procuram ajudar na compreensão mais global [para memória futura] sobre o quotidiano da vida dos ex-combatentes, dos momentos de alguma satisfação e prazer e de outros factos que apelavam à superação permanente e à solidariedade entre pares.
Deste modo, o relato desses factos socio-históricos identificados em cada um dos pontos a baixo, ocorrem num quadro mesclado de acontecimentos em cadeia observados [e gravados...] na tarde/noite de 16SET1972, sábado, e que, tal como o título sugere, envolvem vários fenómenos: - a natureza, o desportivo e o militar, ou seja, trovoada tropical [raios e trovões], futebol [golos] e ataque com armas pesadas [material bélico].
     2.1 – ANTES DOS FACTOS
O sábado, 16Set1972, estava a ser um dia normal, em que cada um de nós fez o que tinha a fazer, cumprindo as diferentes tarefas no quadro da organização militar - internas e externas - com destaque para a segurança à Ponta Coli, às embarcações civis que sulcavam o Geba e à vigilância do aquartelamento feita a partir dos postos colocados em locais estratégicos.
Por outro lado, a Guiné tem um clima tropical o que significa que tem duas estações distintas – a estação das chuvas e a estação seca. A primeira inicia-se em meados de Maio e a segunda em meados de Novembro, pelo que cada estação completa um ciclo de seis meses. Daí que Setembro é um mês que faz parte da primeira estação – a das chuvas – em que as precipitações são geralmente abundantes, tendo maioritariamente o seu início ao fim da tarde ou às primeiras horas da noite.












Esse dia 16Set1972 não fugiu a esta regra. Após o jantar na messe de sargentos recolhemos à nossa “tabanca” um pouco antes das vinte horas, para um merecido repouso, uma vez que a noite prometia vendaval, o que veio a verificar-se, como teremos a oportunidade de relatar no momento próprio. Inferindo-se da legenda abaixo [foto 3], para se chegar ao quarto era só atravessar a rua de terra batida, a única existente no interior do Aquartelamento e que unia as duas principais entradas – a porta-de-armas, com acesso ao Cais ou à estrada alcatroada em direcção a Bambadinca [foto 1; da esqª.] e a da tabanca [foto 2; da dtª.]




2.2 – OS GOLOS… O FUTEBOL… EM LISBOA
O camarada Cláudio Ferreira, que era [é] sportinguista ferrenho e uma enciclopédia da história do SCP [um forte abraço para ele], lembrou-se de que a 2.ª jornada do Campeonato Nacional de Futebol, daquela época: 1972/73, tinha um jogo antecipado para essa noite, e que era, nem mais nem menos, o [seu] Sporting com o União de Tomar, no Estádio José de Alvalade. Estávamos, então, na hora de tentar localizar a transmissão do relato na Emissora Nacional [EN], o que aconteceu. A partir daquele momento, na Guiné [Xime], eram mais três os que assistiam ao jogo através das imagens sonoras transmitidas pelo repórter de serviço [creio que era o Artur Agostinho (1920-2011), um dos mais brilhantes relatores desportivos da época].
Iniciado o jogo, e quando estavam decorridos apenas sessenta segundo, eis a primeira grande emoção da noite vivida pelo Ferreira por efeito da marcação do primeiro golo do Sporting. Foi seu autor Nelson que, apesar de ter visto o seu primeiro remate devolvido por um defesa opositor, a passe de Fraguito, conseguiu fazer a recarga vitoriosa, ainda que em desequilíbrio. Decorridos mais quatro minutos e nova emoção, para gáudio do Ferreira, com o segundo golo do Sporting obtido agora por Marinho, com remate forte e colocado, depois de se ter isolado na sequência de passe longo de Manaca. Aos 23 minutos, novo golo e novo momento alto no interior da “tabanca” do trio de combatentes/desportistas. Era o terceiro golo do Sporting, este concretizado pelo argentino Hector Yazalde [1946-1997], a grande esperança para os lados de Alvalade, esperança que se tornou realidade na época seguinte, pois Hector Yazalde viria a conquistar a Bota de Ouro Europeia, ao contabilizar 46 golos em 30 jogos com a camisola do SCP. E o intervalo chegou com o resultado em 3-0.
     2.3 – OS TROVÕES… E OS RAIOS… NO XIME
Durante o decorrer da primeira parte, a principal atenção esteve focada,
naturalmente, nas peripécias do jogo e as emoções resultaram dos três golos obtidos. Nem nos apercebemos que, no exterior do quarto [tabanca], a noite tinha chegado e os ventos fortes transportavam cada vez mais nuvens, dando origem à queda de água com grande abundância. Estava uma noite verdadeiramente tropical. O contacto directo com este
fenómeno da natureza metia respeito a qualquer um de nós ou, como diz o povo, era de meter medo ao susto. Os trovões eram cada vez mais fortes, fazendo abanar os telhados de chapa dos edifícios ali à volta, enquanto os raios rasgavam, à nossa frente, o céu do Xime, iluminando todo o espaço físico do Aquartelamento [fotos 5 e 6]. Ainda assim a experiência estava a ser pedagogicamente interessante e daí a termos gravado na memória de longo prazo, e agora passada a escrito.
     2.4 – O ATAQUE … E AS BOMBAS… NO XIME
De regresso ao quarto para audição da segunda parte do jogo, voltámos à posição anterior [na cama] com a roupa que a nossa mãe nos deu durante a gestação. A partir de então passaram a ser mais perceptíveis os diversos sons em presença: o da rádio, os das ventoinhas presas aos ferros das cabeceiras das camas e os dos trovões cada vez mais intensos. Entretanto, um outro som se juntou aos anteriores, sendo que este já nos era, também, familiar neste contexto. Tratava-se do rebentamento de granadas de canhão sem recuo, enviadas lá das bandas de Gundaguê Beafada [mapa acima] conforme refere a HU [6.º fascículo - BART 3873].
Quando nos apercebemos que estávamos perante um novo ataque ao Xime perpetrado pelo PAIGC, o ritmo cardíaco e as emoções/tensões aumentaram, mas a reacção surgiu espontânea por parte da nossa equipa de artilheiros do 20º Pel. Art., sob a supervisão do Alf.Mil. Maurício Viegas e dos furriéis Manuel Lino e José Pacheco, coordenados pelo meu/nosso Capitão Pereira da Costa. Porém, a dificuldade maior que se colocou na prontidão das respostas das nossas bocas-de-fogo [obuses 10,5] residiu no facto de não ser possível identificar no imediato, com fiabilidade, o que era a claridade provocada pelos raios e a claridade produzida pelo material bélico. Mesmo assim não deixámos de comunicar com o IN.
Decorridos aproximadamente quinze minutos, deixámos de ouvir e/ou sentir os rebentamentos das granadas, todas elas atingindo pontos situados aquém ou além do alvo, que era o Aquartelamento do Xime e o seu efectivo militar, com excepção de uma granada que caiu a dez metros da messe de sargentos, situada nas traseiras do edifício da foto 3, sem fragmentar, ou à mesma distância da foto seguinte [7].



A partir de então, o alerta manteve-se por mais algumas horas, não havendo, no entanto, danos a registar.
Quanto ao futebol, viemos a saber no dia seguinte, domingo, que o resultado final tinha sido de 4-0, sendo o último golo da autoria de H. Yazalde, aos 75’, que assim bisou na partida.
Sobre os factos mais relevantes da segunda parte do jogo [que no Xime teve outros jogadores… outro ambiente e diferente dinâmica grupal… e outra excitação…], só tomámos contacto com eles depois da recepção do Jornal Desportivo «A BOLA», da edição de 2.ª feira, 18Set1972, pois este jornal, à época, era trissemanário [2.ª, 5.ª e sábado]. A sua remessa da Metrópole, maioritariamente a edição das segundas-feiras, tendo por objectivo o contacto com o fenómeno desportivo nacional e resultados do fim-de-semana, chegava-nos três dias depois, como aconteceu na situação presente.
Relembro que o tema sobre «o que a malta lia, nas horas vagas», foi já abordado por um grupo significativo de grã-tabanqueiros.
Como testemunho histórico, e para encerrar esta narrativa, aqui vos deixo a crónica escrita pela pena do saudoso e amigo Carlos Pinhão [1924-1993], sobre o jogo em apreço.

E agora a constituição das três equipas:
SPORTING C.P. – Damas; Pedro Gomes (cap.) (45m - Dinis), Laranjeira, Bastos e Carlos Pereira; Manaca, Fraguito e Vagner; Marinho, Yazalde e Nelson.
U. TOMAR – Nascimento; Kiki, João Carlos (cap.), Cardoso e Barnabé; Pavão, Manuel José, Raul (45m - Pedro) e Fernando (30m - Bolota); Raul Águas e Camolas.
Árbitro – João Nogueira, da A.F. Setúbal.
Porque cheguei ao fim de mais uma curta viagem pelas memórias do Xime envio, a todos vós, um forte abraço.
Jorge Araújo
06FEV2015
Fotos de: Sousa de Castro, Jorge Araújo e Blogue "Luisgraça&camaradasdaguiné" direitos reservados