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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

P354 - DO OUTRO LADO DO COMBATE - BIGRUPO DE ANSÚ BODJAN [Parte II] - BALANÇO DOS COMBATES ENTRE AS NT E O PAIGC NO SECTOR DE FARIM DESERÇÕES E BAIXAS NO “CORPO DE EXÉRCITO” 199-B-70 - A MORTE DO CMDT DE BIGRUPO ANSÚ BODJAN (1944-1971) -

MSG de: 
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo, 1972/1974)

com data de 12SET2018



Caríssimo Camarada Sousa de Castro,

Os meus melhores cumprimentos.

Conforme referido no fragmento anterior, juntamos a PARTE II, de um total de três, onde continuamos a abordar os factos e os resultados dos combates entre as NT e os guerrilheiros do PAIGC, na região de Farim. 
Relevamos algumas consequências desses episódios que fazem parte da historiografia da Guerra no CTIG.

Com um forte abraço de amizade,

Jorge Araújo.


- A MORTE DO CMDT DE BIGRUPO ANSÚ BODJAN (1944-1971) -
1.   - INTRODUÇÃO
Neste segundo fragmento, de um conjunto de três, continuamos a percorrer alguns dos trilhos que ficaram na história do conflito armado no CTIG [1963/1974], tendo por protagonistas elementos dos dois lados do combate, dos individuais aos colectivos.
Como já referido anteriormente, as narrativas que tenho vindo a partilhar nos diferentes blogues são corolário de um interesse pessoal na pesquisa histórica sobre um período da minha vida (das nossas vidas, enquanto ex-combatentes) e que, naturalmente, nos marcou a todos… mais ou menos, e do qual temos, ainda, muitas “memórias”.
No caso presente, a temática mantém-se a mesma da primeira parte – P353 – onde foram adicionadas outras informações avulsas obtidas de cada um dos lados do combate, que insistimos em coleccionar, no sentido de ampliar ou ajudar a reconstituir essa história com mais dados.
O “balanço dos combates entre as NT e o PAIGC” continua, pois, a ser o tema central deste fragmento, com destaque para as ocorrências negativas contabilizadas pelo Corpo de Exército 199-B-70 – deserções e baixas – registadas no relatório elaborado pelo seu principal responsável, o Cmdt Braima Bangura, respeitante ao período de um ano (dez’70 a dez’71), o primeiro desde a sua criação.
De referir que é nesse ano de 1970 que o PAIGC evolui para um novo modelo de organização militar, adaptando as suas estruturas a uma nova visão da sua luta armada. Partindo do conceito “bigrupo" e da união com mais unidades deste tipo, de infantaria e de artilharia, são criados os “Corpos de Exército” identificados com o “n.º 199”, ao qual lhe foi adicionada uma letra do alfabeto latino (A, B, C, D) e o ano da sua criação, conforme se indica no ponto seguinte, e se observa na foto abaixo tirada aquando do juramento de bandeira do Corpo de Exército 199-A-70.
Citação: (1965-1973), "Juramento de bandeira dos militares do Corpo do Exército 199 A-70 do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms _dc_44137 (2018-4-20), (com a devida vénia).

2.   - CONTEXTOS E UNIDADES ENVOLVIDAS
Recorda-se que os episódios referidos na narrativa anterior foram utilizados para contextualizar a questão de partida da investigação, tendo por base as actividades operacionais desenvolvidas pela Companhia de Caçadores 2533 [CCAÇ 2533] e pela Companhia de Caçadores 14 [CCAÇ 14], em particular nas situações de combate com os elementos do PAIGC que actuavam no Sector de Farim, nomeadamente o bigrupo do Cmdt Ansú Bodjan, um dos quatro bigrupos de infantaria do Corpo de Exército 199-B-70, este liderado pelos Cmdt’s Braima Bangura, Joaquim N’Top e Benjamim Mendes




Os três restantes bigrupos eram dirigidos pelo Cmdt Cambanó Mané, nascido em 1940 em Ioncoiá; pelo Cmdt N’Benfaé N’Tudo, nascido em 1939 em Patché, e pelo Cmdt Sambú Mandján, nascido em 1940 em Sulcó. Para além da infantaria, este Corpo de Exército dispunha, ainda, de uma bataria de artilharia, com morteiros e canhões sem recuo, o primeiro do Cmdt Quintino N’Dafá, nascido em 1935 em João Landim, e o segundo do Cmdt Armando Bodjan, nascido em 1943 em Mansoa.
Para além de outras ocorrências registadas neste sector, os diversos “Corpos de Exército”, criados em 1970 por Amílcar Cabral (1924-1973), estiveram envolvidos, dois anos depois, na estratégia de isolamento de Guidaje iniciada em Abril de 1973, culminado com a “Batalha de Kumbamory”, que ficará gravada para sempre na História da Guiné como «Operação Ametista Real», realizada em 19 de Maio de 1973, onde as NT contabilizaram uma das maiores capturas e destruições de material da Guerra de África.
Croqui do plano de operações da «Operação Ametista Real», planeada e executada sob o comando do Ten Cor Almeida Bruno, para pôr fim ao cerco de Guidaje. Foi uma das mais curtas, sangrentas e brutais batalhas travadas durante a guerra da Guiné. Acabou por aliviar a pressão sobre Guidaje. Tratou-se de uma operação em solo senegalês, tendo como objectivo a destruição da base de Kumbamory, o que foi conseguido na manhã de 20 de Maio de 1973 [faz 45 anos]. O número de baixas foi elevado para ambos os lados: 67 mortos, do lado do PAIGC (que sofreu, além disso, a destruição de 22 depósitos de material de guerra), 25 mortos, do lado das NT (incluindo 2 alferes), e 25 feridos graves (incluindo 3 oficiais e 7 sargentos)”. In P2786-LG (com a devida vénia). [Mais detalhes sobre a Op Ametista Real em P1316-LG, P9898-LG e P9939-LG]. 
No contexto desta narrativa, dá-se conta da constituição das forças do PIAGC envolvidas na «Operação Ametista Real»:
Corpo de Exército 199-B-70, com quatro bigrupos de infantaria e uma bataria de artilharia; Corpo de Exército 199-C-70, com cinco bigrupos de infantaria e uma bataria de artilharia, grupo de foguetes da Frente Norte [GRAD], com quatro rampas; Corpo de Exército 199-A-70, com três bigrupos de infantaria, um grupo de reconhecimento e uma bataria de artilharia, deslocados de Sare Lali, na zona Leste; um pelotão de morteiros 120 mm e um grupo especial de sapadores.
Indicam-se, de seguida, os principais operacionais responsáveis pela estrutura político-militar acima referida:   
Citação: (1970), "Acção Política FARP - Honório Fonseca", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40452 (2018-4-20), (com a devida vénia).

A propósito da formação dos “Corpos de Exército”, enquanto novo modelo de organização da guerrilha do PAIGC, em 13 de Janeiro de 1971 Amílcar Cabral (1924-1973) envia uma carta a Osvaldo Vieira (1938-1974), na qualidade de Cmdt da Frente Norte, dando conta da sua satisfação por essa decisão, nos seguintes termos:
Caro camarada [Osvaldo Vieira],
Acuso a recepção da tua carta-relatório e dos mapas relativos aos CE [Corpos de Exército] e à distribuição de tecidos aos combatentes.
1. - Corpos de Exército - foi uma boa coisa termos formado os CE como previsto. O atraso é normal dadas as dificuldades que nós todos conhecemos, mas eu penso que a reorganização foi feita a tempo. Tanto mais que o camarada “Nino” esteve doente e tiveste tu que te dedicares a mais esse trabalho.
O que é preciso agora é fazer tudo para tirar o máximo rendimento dos CE, da sua grande força. Dar mais duro nos grandes centros e quartéis dos tugas e liquidar os campos mais fracos e isolados. O ataque a Empada foi bom, e eu penso que pudemos fazer mais: pôr os tugas fora e destruir todas as instalações. Claro que devemos evitar, como sempre, grandes perdas.
Escrevi ao “Nino” uma longa carta sobre a nossa acção e no próximo correio te enviarei uma cópia. Os CE devem agir duro e ter grande mobilidade, muita iniciativa e não parar muito numa área. […]
Citação: (1971), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/ 11002/fms_dc_34521 (2018-4-20), (com a devida vénia).
3.   - AS DESERÇÕES NO CORPO DE EXÉRCITO 199-B-70
O fenómeno das deserções em contexto de guerra é considerado normal, ainda que pontual e de percentagem reduzida. O caso da Guerra Colonial não foi, com efeito, excepção. Por isso não é de estranhar a existência de exemplos em cada um dos lados do combate.
Na situação presente, chamou-me a atenção o facto do relatório elaborado pelo Cmdt Braima Bangura, divulgado no primeiro fragmento desta narrativa, fazer referência à deserção de cinco elementos deste Corpo de Exército, mas omitindo os seus nomes.
Citação: (1971), "Relatório da acção do CE [Corpo de Exército] 199-B70, desde a sua formação, em Dezembro de 1970, até ao final do ano de 1971.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40099 (2018-4-20), com a devida vénia.
Idêntica referência tinha já sido objecto de denúncia no relatório elaborado por Osvaldo Vieira, a propósito da sua “missão de inspecção à actividade das Forças Armadas no Norte”.
Citação: (1971), "Relatório de missão de inspecção à actividade das Forças Armadas no Norte", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_ 40059 (2018-4-20) (com a devida vénia).
Entretanto, uma outra situação de “deserção” ocorrera com o grupo “GRAD”, do Cmdt Manuel dos Santos “Manecas”, fazendo fé no conteúdo da carta enviada por Aristides Pereira (1923-2011) a “Nino” Vieira (1939-2009), em 19.12.1970, solicitando a “lista dos camaradas que estavam com o camarada Manecas e fugiram para o sul”.
Citação: (1966-1974), "Relatório remetido por Nino Vieira a Amílcar Cabral expondo a situação na fronteira com a República da Guiné, designadamente os ataques entre Kebo e Guileje", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms _dc_40775 (2018-4-20), p.55, (com a devida vénia).
4.   - O BIGRUPO DO CMDT ANSÚ BODJAN (1944-1971)
Em busca de uma eventual identificação dos “desertores”, a hipótese formulada partiu da variável “local de nascimento” (naturalidade), uma vez que em todos os documentos se refere que as “fugas” seguiram direcções concretas, ou para o Norte ou para o Sul.
Nesse sentido, seleccionámos duas amostras (bigrupos): a do Cmdt Ansú Bodjan, por ser aquele que serviu de base à elaboração desta narrativa, cuja lista se apresenta abaixo; e a do Cmdt Cambanó Mané, outro bigrupo do Corpo de Exército 199-B-70, para efeito de comparação estatística e complemento sociodemográfico.
Citação: (s.d.), "FARP - Corpo de Exército 199/B/70", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40487 (2018-4-20), (com a devida vénia).
Quadro 1 – Distribuição de frequências dos locais de nascimento, por sectores e regiões da Guiné, dos elementos do bigrupo do Cmdt Ansú Bodjan (n-30)
Da análise ao quadro 1, verifica-se que em 30% dos casos (n-9) não foi possível identificar o sector da naturalidade dos indivíduos, situação impeditiva de tirar conclusões. Ainda assim, podemos referir que 56.7% (n-17) nasceram na região do Oio, situada mais a Norte; com 10% (n-3) na região do Cacheu e 3.3% na região de Tombali, um caso, sendo este o mais a Sul.
Quadro 2 – Distribuição de frequências dos locais de nascimento, por sectores e regiões da Guiné, dos elementos do bigrupo do Cmdt Cambanó Mané (n-27)
Da análise ao quadro 2, verifica-se a mesma situação do observado no quadro anterior, em que 25.9% dos casos (n-7) não foi possível identificar o sector da naturalidade dos indivíduos. Ainda assim, os resultados são diferentes do quadro 1, em que 25.9% dos sujeitos (n-7) têm origem na região de Tombali, situada mais a Sul do território. A região do Oio, com 22.3% (n-6) surge em segundo lugar como origem de naturalidade. As regiões de Bissau (n-1), Bafatá (n-2), Bolama (n-1), Cacheu (n-2) e Quinara (n-1), não têm expressão estatística.
Perante estes resultados, não nos é possível tirar grandes conclusões.
5.   - AS BAIXAS NO CORPO DE EXÉRCITO 199-B-70 (1970/71)
Segundo o relatório elaborado em 24 de Dezembro de 1971 pelo Cmdt Braima Bangura, um dos responsáveis militares do Corpo de Exército 199-B-70, e membro do Conselho Superior de Luta e do Comité Executivo da Luta, o número de baixas desde a sua fundação (um ano completo) foi de treze. A principal baixa vai para o seu adjunto do CE, Cmdt Benjamim Mendes, ocorrida em 11 de Agosto de 1971, o mesmo acontecendo a José N. Cus, Chefe de Grupo. Dois dias depois, mais duas baixas, as de Conko Seidy e Sana Sano. O Cmdt do bigrupo, Ansú Bodjan (1944-1971), morreu em 14 de Novembro de 1971, o último nome da lista abaixo.
Citação: (1971), "Relatório da acção do CE [Corpo de Exército] 199-B70, desde a sua formação, em Dezembro de 1970, até ao final do ano de 1971.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40099 (2018-4-20).
As restantes baixas constam dos quadros apresentados na primeira parte.
Continua…
À vossa consideração.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
12SET2018.



quarta-feira, 5 de setembro de 2018

P353 - GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE - A MORTE DO CMDT DO BIGRUPO ANSÚ BODJAN (1944-1971) - Jorge Araújo

MSG de: Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494(Guiné, Xime-Mansambo, 1972/1974) com data de: 28AGO2018


Caríssimo Camarada Sousa de Castro,

Os meus melhores cumprimentos.

Anexo mais um texto relacionado com as nossas memórias da Guerra na Guiné elaborado no âmbito do meu dossier «(D)o Outro Lado do Combate».
Trata-se da Parte I, de um total de três, onde abordo os factos e os resultados dos combates entre as NT e os guerrilheiros do PAIGC, na região de Farim.

Com um forte abraço de amizade,

Jorge Araújo. 



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
BALANÇO DOS COMBATES ENTRE A CCAÇ 2533 E CCAÇ 14 E O “CORPO DE EXÉRCITO” 199-B-70 [PAIGC]
NO SECTOR DE FARIM
- A MORTE DO CMDT DO BIGRUPO ANSÚ BODJAN (1944-1971) - 
Citação: (1963-1973), "Coluna de guerrilheiros do PAIGC avançando por um trilho", Casa Comum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43531 (2018-4-20), com a devida vénia.


1.  
INTRODUÇÃO
Numa retrospectiva histórica e cronológica, muitas das narrativas aqui apresentadas têm sido escritas na primeira pessoa. Porém, quando nesse âmbito se recorre e intercala a divulgação de factos, feitos e resultados grafados nas brochuras elaboradas pelas respectivas Unidades seleccionadas, cada novo texto é mais uma peça do puzzle da memória da «Guerra do Ultramar» – a da Guiné – por via da adição de novas imagens impregnadas de vivências e experiências, singulares e colectivas, independentemente da época, do lugar e do contexto.
Agora, com o acesso público ao acervo documental de Amílcar Cabral (1924-1943) existente na Casa Comum – Fundação Mário Soares, passou a ser possível “circular” entre os dois lados do conflito, cruzando as diferentes versões no sentido do seu aprofundamento factual na busca da verdade possível, como é o presente exemplo.
Assim sendo, apresento o resultado de mais um trabalho de pesquisa, nascido da adição de informações diversas obtidas de cada um dos lados do combate, título com que baptizei estas narrativas específicas, cujos episódios estão a uma distância de quase meio século. Trata-se de reconstituir a história com mais dados.
2.   CONTEXTOS E UNIDADES ENVOLVIDAS
Os episódios que me propus partilhar neste espaço de ex-combatentes, e que constam nesta narrativa como objecto central da pesquisa, inscrevem-se no quadro das actividades operacionais desenvolvidas pela Companhia de Caçadores 2533 [CCAÇ 2533], de origem metropolitana, e pela Companhia de Caçadores 14 [CCAÇ 14], de Recrutamento Local.
Esses factos, que serão identificados por ordem cronológica ao longo do texto, ocorreram no Sector de Farim, situado na margem Norte do Rio Cacheu, na Região do Oio [ver mapa abaixo], e dizem respeito aos combates travados pelas duas Unidades das NT, na sequência de duas emboscadas montadas pelo “Corpo de Exército” 199-B-70 [PAIGC], a primeira a 14 de Dezembro de 1970 (2.ª feira) e a segunda a 30 do mesmo mês (4.ª feira), tendo-se verificado baixas de ambos os lados.


No mapa acima [Frente Norte] a seta a vermelho indica o território onde ocorreram os combates, localizados no itinerário entre Farim e Jumbembem, o primeiro envolvendo a CCAÇ 2533 (14Dez1970) e o segundo a CCAÇ 14 (30Dez1970), tendo do outro lado da “barricada” o bigrupo do “Corpo de Exército” 199-B-70, liderado pelo Cmdt Ansú Bodjan.
As setas a azul correspondem aos locais de penetração das forças do PAIGC vindas das bases existentes em território da República do Senegal, em particular os corredores de “Lamel” e “Sitató”.
2.1        A EMBOSCADA DA CCAÇ 2533 – A 14DEZ1970
Da consulta realizada às “Histórias” desta Unidade, encontrámos uma referência a este episódio no P13390-LG, escrito pelo ex-alf Armando Mota, do 1.º GrComb, ao qual deu o título de «ENCONTRO EM LAMEL».
Pelo valor historiográfico no contexto da guerra e como suporte documental deste trabalho, decidi transcrevê-lo na íntegra.
A esse propósito, Armando Mora disse: “Naquele dia 14 de Dezembro de 1970, o 1.º
Pelotão fora escalado para transportar e fazer a segurança de um grupo de africanos que iria fazer a capinagem junto à estrada em Lamel, dado que se verificava que aquele corredor estava a ser muito utilizado para a infiltração do IN no território, e o capim ajudava a esconder a seu presença.
O 3.º Pelotão partira antes, para fazer a picagem da estrada até ao local dos trabalhos. Eram 8h10, após fazermos a chamada do pessoal da capinagem, distribuímos os trabalhadores pelas viaturas e partimos.
Passados alguns 15 minutos chegámos ao Bolumbato, onde avistámos a equipa de picagem. Decidi que a coluna esperaria ali, pois era mais seguro do que seguir em andamento lento atrás do pelotão da picagem.
Toda a gente desmontou das viaturas, montámos a segurança como habitualmente e ficámos por ali, descontraidamente, lembro-me de tirar uma foto ao soldado Guilherme [João Bento Guilherme] do Batalhão de Farim [BCAÇ 2879], condutor da minha viatura, a Berliet que seguia à frente.
Só próximo do fim da recta que antecede a rampa para Lamel, avistei o último dos elementos do 3.º Pelotão que nos fazia sinais para encostar. Pedi para parar e entrar no mato à direita pois o IN estava a atacar do lado esquerdo (Norte).
Ouvi perfeitamente 3 ou 4 tiros na nossa direcção, que não nos atingiram, saltei para o chão, atravessei a estrada e instalei-me enquanto o resto do 1.º Pelotão estacionava e tomava também posições. Ouvi uma rajada bastante próxima e perguntei quem tinha feito fogo… o fogo não era nosso. Íamos começar a avançar quando o Fonseca me disse que o soldado Guilherme [condutor] estava caído e ferido. Arrastámo-lo para a estrada, inconsciente e logo me apercebi que era sério.


Como estava de pistola, pedi a G3 emprestada ao Fonseca e fui buscar o nosso enfermeiro que me confirmou que era muito grave. Decidi evacuá-lo imediatamente para Farim. Desloquei-me à 2.ª viatura para conseguir ajuda no transporte do ferido, mas ao aperceber-me do drama e para facilitar, o soldado Solipa ofereceu-se pois não tínhamos condutor, para conduzir a viatura dali para Farim, e corremos os dois para junto do grupo que protegia o ferido. Ainda debaixo de fogo, o Solipa manobrou a Berliet e carregámos o Guilherme já inconsciente. Partimos, eu o enfermeiro e mais três soldados rapidamente
para Farim. Recordo-me de lhe segurar a cabeça para não se magoar no chão da viatura, enquanto com a outra mão me segurava à estrutura do banco corrido. No outro extremo o Evangelista segurava-lhe as pernas, também deitado e agarrado ao banco com uma mão. As minhas pernas já iam fora do estrado da viatura e era difícil manter a posição dada a velocidade da Berliet e as irregularidades da picada.
Acreditávamos que ia valer a pena…
Foi um esforço em vão, inglório. Marcou-nos a todos também… Aqui destacou-se o soldado Solipa ex-condutor e condenado por indisciplina, pelo comando de Bissau, a “fazer a tropa connosco” no mato.
O soldado Solipa foi louvado pela atitude de solidariedade com um camarada, debaixo de fogo. Enviei à família do soldado Guilherme uma nota de sentimento com a foto que lhe tirei vinte minutos antes de falecer, descrevendo a acção onde caiu. Não obtive resposta e nunca mais comunicámos”.
[O camarada João Bento Guilherme era natural da Vila de Fazendas de Almeirim].
Ass. Alf. Armando Mota, 1.º Pelotão
2.2        A EMBOSCADA DA CCAÇ 14 – A 30DEZ1970
Depois de concluída no C.I.M. (Centro de Instrução Militar), em Bolama, a sua formação/instrução em finais de Outubro de 1969, a Companhia de Caçadores 14 [companhia das etnias mandinga e manjaca - ex-CCAÇ 2592] rumou nos primeiros dias de Novembro de 1969 para a zona operacional que lhe tinha sido destinada – CUNTIMA, mesmo junto à fronteira com a República do Senegal.
 
Cuntima. Tabanca no Senegal. Foto do álbum do camarada Humberto Nunes (ex. alf mil Cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael Porto e Cuntima, 1972/74) – P10340-LG, com a devida vénia.
Para caracterizar a actividade operacional da CCAÇ 14, recorremos aos depoimentos do camarada ex-fur Eduardo Estrela (Cuntima, 1969/71). No P11365-LG, ele refere: “Em Cuntima, a actividade operacional era intensa pois estavam no mato permanentemente dois ou mais grupos de combate, por períodos de quarenta e oito horas. A guarnição de Cuntima, normalmente composta por duas companhias operacionais, Pelotão de Obuses e
Pelotão de Milícias, para além das interdições ao ‘corredor de Sitató’, fazia picagens à estrada, escoltas às colunas para Farim, segurança próxima e afastada ao aquartelamento e as operações militares que obrigavam a utilização de maiores meios.
As colunas a Farim eram diárias e o desgaste físico e psíquico muito grande, pois volta não volta o PAIGC aparecia. (…) Em Farim fazíamos interdição ao ‘corredor de Lamel’, numa época em que o PAIGC estava muito activo. De tal modo activo que entre o início de dezembro de 1970 e meados de janeiro de 1971, a guarnição do BCAÇ 2879 sofreu algumas baixas, entre mortos e feridos”.
Por ausência de testemunho escrito relacionado com esta emboscada sofrida pela CCAÇ 14, em 30 de Dezembro de 1970, apenas podemos acrescentar que neste combate aquela unidade das NT registou dois mortos, um do recrutamento local e outro do contingente metropolitano, a saber:


2.3        A ACTIVIDADE OPERACIONAL DO “CORPO DE EXÉRCITO”
   199-B-70 (1970/1971)
No âmbito deste trabalho, apurámos que o “Corpo de Exército” 199-B-70 foi criado durante o mês de Novembro de 1970, na Frente Sul, tendo Nino Vieira (1939-2009) tomado a iniciativa de enviar uma carta, de Candjafara, a Aristides Pereira (1923-2011), datada de 18 desse mês, informando-o desse facto.

Citação: (1966-1974), "Relatório remetido por Nino Vieira a Amílcar Cabral expondo a situação na fronteira com a República da Guiné, designadamente os ataques entre Kebo e Guileje", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40775 (2018-4-20).
Como elemento informativo oficial, e por isso importante para melhor se compreender o contexto e as dimensões das actividades subversivas do PAIGC na Frente Norte, particularmente na avaliação e controlo dos diferentes factores com elas relacionadas, localizámos um documento elaborado por Osvaldo Vieira (1938-1974), à época membro do Conselho Superior de Luta e do Comité Executivo da Luta, de 9 de Agosto de 1971.
Partindo da análise do conteúdo, circunscrevemos as partes que melhor se enquadram na presente temática, não deixando de reproduzir o texto na íntegra.
Osvaldo Vieira refere que após realizar a sua missão de inspecção no Norte [Frente], concluiu que a situação era razoável, embora a falta de homens e de munições eram um problema bastante sério, principalmente na Região do Canchungo [ex-Teixeira Pinto] e outros Sectores como Naga e Morés. Para além disso, as actividades das Forças Armadas eram consecutivas e a maior parte delas com bastante êxito, e que nos últimos tempos têm causado ao inimigo [NT] duras perdas em homens e em materiais de guerra. Quanto ao comportamento dos camaradas em geral era bastante bom e com maior disciplina. 


Aquando da sua entrada em território da Guiné, somente se encontrava um “corpo do exército”, o n.º 199-C-70, que fazia as suas actividades na Frente Nhacra-Morés. Os restantes “corpos de exército” encontravam-se na linha da fronteira com a República do Senegal, exercendo as suas missões naquela área.

Quanto aos outros dois “corpos de exército”, 199-A-70 e 199-B-70 [aquele que nos interessa] encontravam-se na linha de fronteira a fazer missão e logo que ela esteja cumprida, irão para o interior do país [Guiné], segundo a determinação de Amílcar Cabral [SG]. Em relação às forças locais [FAL] encontram-se estacionadas no Cassu, S. Domingos, Camparada, Ingoré, Sano, Cumbamore e Faiarte. Também existe um grupo no Ermancono, na linha de fronteira, que tem como tarefa apoiar a entrada de munições e tudo o que se refere a necessidades do exército. 
Tem havido certas fugas [deserções] no seio do “corpo de exército” dos camaradas que vieram para o reforçar, especialmente os oriundos do Sul. Quanto à fuga em direcção à fronteira [Norte] tem havido muito raramente, que, segundo ele, é devido à organização que se nota no interior do exército.
 
Citação: (1971), "Relatório de missão de inspecção à actividade das Forças Armadas no Norte", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40059 (2018-4-20), com a devida vénia.


2.4        BALANÇO DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DO “CORPO DE EXÉRCITO” 199-B-70 (1970/1971)



Para concluir o primeiro fragmento desta narrativa, importa agora dar conta do que consta no relatório, tipo “caderno de apontamentos”, manuscrito pelo responsável militar do “Corpo de Exército” 199-B-70, Cmdt Braima Bangura, também ele membro do Conselho Superior de Luta e do Comité Executivo da Luta. O documento foi elaborado em Ziguinchor [República do Senegal] e tem a data de 24 de Dezembro de 1971.

Citação: (1971), "Relatório da acção do CE [Corpo de Exército] 199-B70, desde a sua formação, em Dezembro de 1970, até ao final do ano de 1971.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40099 (2018-4-20), com a devida vénia.

Continua…

À vossa consideração.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
27AGO2018.