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sexta-feira, 29 de abril de 2022

P423 - (...) Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana.(...) TEXTO RECUPERADO DA "RÁDIO ALTO MINHO" DE JOSÉ CARVALHIDO DA PONTE EX. FUR. MILº ENF. DA CART 3494 ONDE DESCREVE COMO VIU A MORTE DO SEU AMIGO FURRIEL, MANUEL DA ROCHA BENTO VITIMA DA EMBOSCADA PERPETRADA PELO PAIGC NA PONTA COLI - GUINÉ QUE TRANSCREVO COM A DEVIDA VÉNIA.


RÁDIO ALTOMINHO COM A DEVIDA VÉNIA

(...) Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana.(...)

OPINIÃO: POR OTELO!

JOSÉ LUÍS CARVALHIDO DA PONTE

29 JULHO 2021, 11:40

"Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo."

Recordar é, etimologicamente, o ato (-ar) de voltar a trazer (re-) ao coração (-cord-). Recordar é, pois, um exercício de memória. Mas este como que regurgitar emotivo é uma mentira. Na verdade, o coração atraiçoa-nos a memória. Se o que recordamos nos foi, no ato do desenlace, agradável, revivê-lo-emos com uma prazerosa e, não raro, aumentada nostalgia. Se, pelo contrário, nos magoou, remastigá-lo será sempre um momento de agigantado masoquismo. A mesma praia será morada dos deuses para quem nela pela primeira vez amou, e amaldiçoado inferno para quem no seu mar perdeu um ente amado.

Vem isto a propósito das reações contrárias que a morte de Otelo provocou em todos nós. Uns recordam, tão só, o estratega der Abril; outros aplaudem a justiça, ainda que tardia, de Cronos, que tornou possível a nossa liberdade, reconhecendo-lhe, muito embora, os momentos menos felizes, que até acabou por pagar à sociedade, na prisão.

Faço parte desta plêiade. Reconheço que Otelo foi um homem de excessos. Polémico, pois. Mas pagou, com a prisão, e foi amnistiado pelo estado português em 2004. Mas, mesmo que assim não fosse, foi o Atlas da nossa liberdade. Arriscou. Planeou. Convenceu. Liderou. Conseguiu. E fomos livres, e somos livres e tão livres que todos nós podemos, publicamente, expressar-nos e até podemos opinar sobre o comportamento do Governo e do atual Presidente da República, na gestão deste processo.

Mas eu tenho inúmeras outras razões. Hoje partilho uma.

Era o dia 22 de abril de 1972. Eu não tinha ainda 22 anos e estava na Guiné-Bissau, como enfermeiro, desde o início de janeiro desse ano, integrado na Companhia de Artilharia 3494 (CART 3494).

Manhã cedo, o 4º Grupo de Combate partiu para a mata de Ponta Coli, para garantir a segurança à estrada Xime­-Bambadinca.  Aguardava-os uma emboscada dos guerrilheiros do PAIGC.

Alguns de nós, que ainda dormíamos, acordamos com os estrondos das rebentações e, logo-logo o Capitão Vítor Manuel da Ponte da Silva Marques, que nada me era, mandou avançar reforços em,
salvo erro, duas unimog’s militares. E que o enfermeiro também teria de ir. Naturalmente.

Chegamos à ponta Coli. Que desolação. Tantos feridos! Mas grave mesmo era o Furriel Manuel Bento, meu companheiro de abrigo, natural de Ponte de Sor, onde deixara uma jovem esposa e uma bébé que nunca mais veria. Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava. A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da caixa craniana. Para que nada se perdesse e regressasse ao húmus, o mais inteiro possível. Éramos grandes amigos e falava-me da esposa e da filha, que terá hoje 50 anos, e da esperança de as rever, logo que pudesse gozar algum tempo de férias. Não chorei. Só à tardinha, no silêncio ocasional da barraca, que ambos partilháramos, sob uma imensa mangueira. Só à tardinha, ou às vezes, nestes 50 anos, quando o coração me prega a partida e permite a memória.

Abençoado sejas Otelo! A tua coragem livrou da morte muitos outros jovens e deu-nos a capacidade de sonharmos para além dos impossíveis. Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo. Ele, que falava de paz e mandava que nos amássemos uns aos outros, não quis pactuar com os que prostituíam os seus espaços sagrados. Disse que um dia voltaria para nos resgatar. Espero que demore um pouco mais a vir, não vão os doutores da lei da nossa modernidade mandar que o prendam, porque um dia foi violento.

Como me magoou a fraqueza titubeante dos nossos governantes que não souberam dar-te as honras devidas, no momento da tua última aventura.

 

Meadela, 28 de julho de 2021
José Luís Carvalhido da Ponte

 
José Luís Carvalhido da Ponte ex. Furriel Milº Enf. da Cart 3494/BART 3873, sediado no Xime e mais tarde em Mansambo – Guiné, dezembro 1971 a 03 de abril 1974.
Foi professor e diretor da Escola Secundária de Monserrate, Viana do Castelo. Tem vários trabalhos publicados aqui: http://bivam.pt/autor/jose-luis-carvalhido-da-ponte/
http://bivam.esmonserrate.org/clr/autores/AutorBibliografia.asp?codAutor=25 
José Carvalhido da Ponte da Associação de Cooperação com a Guiné com o apoio do Rotary Clube de Viana do Castelo, é responsável pelo trabalho desenvolvido no Cacheu, cidade geminada com Viana do Castelo. Muito dedicado à causa humanitária na Guiné, para onde se desloca regularmente no sentido de contribuir para o bem-estar daquele povo, nomeadamente na área da saúde.


 Vd.post.:http://cart3494guine.blogspot.pt/2010/09/p-78-rotary-clube-de-viana-deixa-obra.html 

2 comentários:

Jorge Araujo disse...

Camarada Carvalhido da Ponte,

Caro "mézinho" para o colectivo da CART 3494.

Obrigado por este teu testemunho humanista, ao recordares, com grande sentimento, alguns dos factos que fazem parte das nossas piores experiências colectivas vividas no Xime, em particular as ocorrências do dia 22 de Abril de 1972, fez a semana passada cinquenta anos (meio século).

Obrigado, fica bem com saúde, e um grande abraço.
Jorge Araújo.

Anónimo disse...

Recordo esse triste dia. Estava no Enxale, no outro lado do Geba mas tive logo mais pressentimentos. O Bento. Excelente pessoa e camarada. Paz à sua alma.