OPINIÃO: POR OTELO!
29 JULHO 2021, 11:40
"Em dada altura simpatizaste com a
violência dos que não se compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de
abril, é verdade. E não o devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo
“passou-se dos carretos” e chicoteou todos os vendilhões do seu templo."
Recordar é, etimologicamente, o ato (-ar) de voltar a
trazer (re-) ao coração (-cord-). Recordar é, pois, um exercício de memória.
Mas este como que regurgitar emotivo é uma mentira. Na verdade, o coração
atraiçoa-nos a memória. Se o que recordamos nos foi, no ato do desenlace,
agradável, revivê-lo-emos com uma prazerosa e, não raro, aumentada nostalgia.
Se, pelo contrário, nos magoou, remastigá-lo será sempre um momento de
agigantado masoquismo. A mesma praia será morada dos deuses para quem nela pela
primeira vez amou, e amaldiçoado inferno para quem no seu mar perdeu um ente
amado.
Vem isto a propósito das reações contrárias que a
morte de Otelo provocou em todos nós. Uns recordam, tão só, o estratega der
Abril; outros aplaudem a justiça, ainda que tardia, de Cronos, que tornou
possível a nossa liberdade, reconhecendo-lhe, muito embora, os momentos menos
felizes, que até acabou por pagar à sociedade, na prisão.
Faço parte desta plêiade. Reconheço que Otelo foi um
homem de excessos. Polémico, pois. Mas pagou, com a prisão, e foi amnistiado
pelo estado português em 2004. Mas, mesmo que assim não fosse, foi o Atlas da
nossa liberdade. Arriscou. Planeou. Convenceu. Liderou. Conseguiu. E fomos
livres, e somos livres e tão livres que todos nós podemos, publicamente,
expressar-nos e até podemos opinar sobre o comportamento do Governo e do atual
Presidente da República, na gestão deste processo.
Mas eu tenho inúmeras outras razões. Hoje partilho
uma.
Era o dia 22 de abril de 1972. Eu não
tinha ainda 22 anos e estava na Guiné-Bissau, como enfermeiro, desde o início
de janeiro desse ano, integrado na Companhia de Artilharia 3494 (CART 3494).
Manhã cedo, o 4º Grupo de Combate partiu
para a mata de Ponta Coli, para garantir a segurança à estrada Xime-Bambadinca.
Aguardava-os uma emboscada dos guerrilheiros do PAIGC.
Alguns de nós, que ainda dormíamos,
acordamos com os estrondos das rebentações e, logo-logo o Capitão Vítor Manuel
da Ponte da Silva Marques, que nada me era, mandou avançar reforços em,
salvo
erro, duas unimog’s militares. E que o enfermeiro também teria de ir.
Naturalmente.
Chegamos à ponta Coli. Que desolação.
Tantos feridos! Mas grave mesmo era o Furriel Manuel Bento, meu companheiro de
abrigo, natural de Ponte de Sor, onde deixara uma jovem esposa e uma bébé que
nunca mais veria. Ainda gemia, sabia lá eu porquê, de tão desfeito que estava.
A cabeça esventrada. Juntei-lhe os bocados e aconcheguei-os no que restava da
caixa craniana. Para que nada se perdesse e regressasse ao húmus, o mais
inteiro possível. Éramos grandes amigos e falava-me da esposa e da filha, que
terá hoje 50 anos, e da esperança de as rever, logo que pudesse gozar algum
tempo de férias. Não chorei. Só à tardinha, no silêncio ocasional da barraca,
que ambos partilháramos, sob uma imensa mangueira. Só à tardinha, ou às vezes,
nestes 50 anos, quando o coração me prega a partida e permite a memória.
Abençoado sejas Otelo! A tua coragem livrou da morte
muitos outros jovens e deu-nos a capacidade de sonharmos para além dos
impossíveis. Em dada altura simpatizaste com a violência dos que não se
compaginavam com as ameaças de regresso do 24 de abril, é verdade. E não o
devias ter feito. Mas, sabes, um dia, Cristo “passou-se dos carretos” e
chicoteou todos os vendilhões do seu templo. Ele, que falava de paz e mandava
que nos amássemos uns aos outros, não quis pactuar com os que prostituíam os
seus espaços sagrados. Disse que um dia voltaria para nos resgatar. Espero que
demore um pouco mais a vir, não vão os doutores da lei da nossa modernidade
mandar que o prendam, porque um dia foi violento.
Como me magoou a fraqueza titubeante dos nossos
governantes que não souberam dar-te as honras devidas, no momento da tua última
aventura.
Meadela, 28 de julho de 2021
José Luís Carvalhido da Ponte
José Luís Carvalhido da
Ponte ex. Furriel Milº Enf. da Cart 3494/BART 3873, sediado no Xime e mais
tarde em Mansambo – Guiné, dezembro 1971 a 03 de abril 1974.
Foi professor e diretor da
Escola Secundária de Monserrate, Viana do Castelo. Tem vários trabalhos
publicados aqui: http://bivam.pt/autor/jose-luis-carvalhido-da-ponte/
http://bivam.esmonserrate.org/clr/autores/AutorBibliografia.asp?codAutor=25
José Carvalhido da Ponte
da Associação de Cooperação com a Guiné com o apoio do Rotary Clube de Viana do
Castelo, é responsável pelo trabalho desenvolvido no Cacheu, cidade geminada
com Viana do Castelo. Muito dedicado à causa humanitária na Guiné, para onde se
desloca regularmente no sentido de contribuir para o bem-estar daquele povo,
nomeadamente na área da saúde.
Vd.post.:http://cart3494guine.blogspot.pt/2010/09/p-78-rotary-clube-de-viana-deixa-obra.html
2 comentários:
Camarada Carvalhido da Ponte,
Caro "mézinho" para o colectivo da CART 3494.
Obrigado por este teu testemunho humanista, ao recordares, com grande sentimento, alguns dos factos que fazem parte das nossas piores experiências colectivas vividas no Xime, em particular as ocorrências do dia 22 de Abril de 1972, fez a semana passada cinquenta anos (meio século).
Obrigado, fica bem com saúde, e um grande abraço.
Jorge Araújo.
Recordo esse triste dia. Estava no Enxale, no outro lado do Geba mas tive logo mais pressentimentos. O Bento. Excelente pessoa e camarada. Paz à sua alma.
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