Caríssimo Camarada Sousa de Castro,Os meus melhores cumprimentos.
Depois de uma pausa de cerca de sete meses, eis que tomei a iniciativa de escrever mais umas linhas abordando mais uma ocorrência que consta do meu currículo vivido na Guiné.Trata-se de uma resposta ao desafio proposto pelo nosso camarada Luís Graça, pelo que este texto, com os ajustes adequados, irá, também, estar disponível no blogue da «Tabanca Grande».
Espero ter feedback aos pedidos solicitados no fnal do mesmo.Obrigado!
Com um forte abraço,Jorge Araújo
GUINÉ
Jorge
Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo,
1972/1974)
E UM (AUTO) PARTO NÃO
ASSISTIDO
- Entre duas emoções
fortes vividas no mesmo dia em 1973 -
Influenciado pela sugestão do camarada Luís Graça, editor do Blogue «Luís Graça & Camaradas da Guiné», que nos lançou o mote para a narrativa de (mais) episódios ocorridos durante a comissão de serviço na Guiné, mas agora na especialidade de «parteiros/aparadeiros…», decidi dar um passo em frente e, recorrendo à minha memória de longo prazo, pois já fez ou vai fazer quarenta anos de gravação, dar-vos conta de uma história que acabou por se transformar em duas, como o próprio título sugere, e que foi vivida por alguns camaradas da CART 3494.
I – UMA PARTURIENTE QUE NÃO DEU À LUZ
Num domingo do mês de Abril ou Maio de 1973, que não consigo precisar, agora no aquartelamento de Mansambo para onde a nossa Companhia se transferiu após a sua saída do Xime em Março desse ano, o meu pelotão estava de «intervenção».
Num domingo do mês de Abril ou Maio de 1973, que não consigo precisar, agora no aquartelamento de Mansambo para onde a nossa Companhia se transferiu após a sua saída do Xime em Março desse ano, o meu pelotão estava de «intervenção».
Por volta das 08:00 horas, a central
rádio da Companhia recebe uma mensagem dando conta de uma mulher guineense, localizada
numa tabanca a cerca de doze quilómetros de distância, em final de tempo de gravidez,
estava em dificuldades no seu processo de trabalho de parto, devido à criança
estar atravessada no seu ventre, apelando por auxílio urgente.
Para o desempenho desta missão
específica foi convocado o nosso camarada ex-Furriel (mesinho) Carvalhido da
Ponte (também ele muito activo no nosso Blogue) por ser o mais especializado na
matéria. Como não podia ir sozinho (ninguém o deixaria fazer!) reuni os
elementos do meu GComb e em duas viaturas Unimog lá fomos em socorro de quem o
solicitara. O itinerário foi todo ele percorrido em picada, e parte dele feito
a pé, por razões de segurança, como não poderia deixar de ser.
Chegados ao destino, os elementos do
GComb foram-se posicionando ao longo do perímetro das moranças, mas o mais
operacional era agora o camarada Carvalhido da Ponte, pois tinha de arregaçar
as mangas e pôr-se a trabalhar para salvar uma vida .. ou as duas. O tempo ia
passando e … nem bebé, nem luz, nem ambos.
Enquanto aguardávamos
pelas notícias positivas vindas do Carvalhido da Ponte,
eis que:
II – UM (AUTO)PARTO NÃO ASSISTIDO
Neste tempo de expectativa e,
simultaneamente, de descanso mais ou menos activo, em que era obrigatório estar-se
atento a tudo o que era passível de ser observado à minha/nossa volta, por
tratar-se da primeira vez que aí nos deslocávamos, local cujo nome não consigo
recordar, particularmente porque a ele não voltei, pelo que não o poderei
referir neste contexto, o que lamento.
Quando vagueava por entre as diferentes
palhotas, seleccionando as melhores sombras, pois o calor aumentava a cada
minuto, e os ponteiros do relógio indicavam então (já!) 13:30 horas (hora de
almoço), foi grande o espanto provocado pelas imagens que estavam no meu
horizonte visual.
No interior de uma palhota, sem porta,
mas com uma entrada um pouco maior do que era habitual, uma mulher guineense,
numa posição de pernas afastadas, com os joelhos flectidos e com o tronco a
90º, segurava com as suas duas mãos uma pequena cabeça de um novo Ser que
estava em processo de dar à luz, em regime de autoparto, ou parto não
assistido, mas com um assistente, não convidado, a curta distância do acto.
A
primeira avaliação sobre o que os meus olhos registavam não dava por adquirido
tratar-se do nascimento de um bebé, uma vez que o corpo desnudo da mulher/mãe
estava a três-quartos, de costas para o exterior. Mas com uma pequena correcção
da nossa posição, ficámos sem dúvidas: era mesmo verdade. Era uma imagem plena
de significado e um momento singular poder assistir a um fenómeno da natureza
humana como é o do nascimento, ou seja, a primeira grande transcendência da
vida … sendo a morte a derradeira transcendência do Homem.
Com
as pernas ensanguentadas, a criança totalmente fora e com recurso a um canivete
acastanhado, tal era a ferrugem de que estava impregnado, a mulher/mãe corta o
cordão umbilical, prepara o umbigo do bebé, coloca a sua criança em cima de uma
esteira que está perto de uma pequena fogueira situada a um canto daquele
espaço térreo e sai com uma terrina de cabaça na mão, enrolando a parte
inferior do seu corpo com um pano tradicional (semelhante à imagem).
Segue em direcção à vegetação que se
encontra (+/-) a vinte metros da sua palhota, penetrando no seu interior. O seu
destino era uma fonte ali existente, onde tomou o seu primeiro banho pós-parto.
Acompanhei com curiosidade o seu regresso, continuando a gravar este “filme” de
uma realidade bem diferente da dos povos mais desenvolvidos, e em que, neste
caso, o actor é simultaneamente o seu realizador.
Com a terrina à cabeça cheia de água, esta
destinava-se a ser utilizada na limpeza daquele que era o seu quinto filho,
como vim a saber depois de ter estabelecido um pequeno diálogo com aquela
mulher grande, tal era a minha admiração.
Contemplei o que foi possível, mas a
jornada tinha ainda outras tarefas para cumprir.
De regresso ao local onde a outra mulher
gemia com dores, e o camarada Carvalhido da Ponte, no seu labor, não conseguia
resolver o problema que estava à sua frente, foi decidido requisitar/chamar um
helicóptero para evacuar esta mulher para o Hospital de Bissau, uma vez que
corria risco de vida.
Concluída esta missão, regressámos ao
aquartelamento a meio da tarde, para um tardio mas merecido almoço, depois de
termos vivido entre várias emoções com significados bem diferentes.
III – O CONCURSO «UMAGUERRACEMPALAVRAS»
Em Setembro de 1997, o Diário de
Notícias lançou à opinião pública, em particular aos ex-combatentes dos três
T.O., o concurso «Uma GuerraCemPalavras», ao qual decidimos participar
com a história referente à primeira situação.
Porque o concurso foi realizado há mais de
quinze anos, e porque certamente nem todos a ele tiveram acesso, tomei a
liberdade de Vos dar conta do seu regulamento, bem como do meu conteúdo sujeito
à avaliação do júri.
O DN sugeria:
Escreva uma história sobre a Guerra
Colonial e Ganhe 8 viagens a África.
Regulamento
1. “uma
GuerraCemPalavras” é uma iniciativa do Diário de Notícias que acolhe narrativas
ficcionadas sobre o tema da guerra colonial em África (1961-1974) ou
relacionadas com as suas origens e consequências directas, em que o limite máximo
do texto é de cem palavras, incluindo o título.
2. Para
efeito de contagem, consideram-se palavras todos os vocábulos autónomos,
independentemente do seu tamanho ou função gramatical. Por exemplo: em “a Joana
e a Maria disseram-me que tinham usado pó-de-arroz” são contadas dez palavras.
3. Todas
as histórias têm de incluir título e texto.
4. Podem
participar nesta iniciativa todas as pessoas que o desejem, independentemente
da idade, profissão ou local de trabalho e sem número limite de histórias
concorrentes.
5. Um
júri presidido pelo director do Diário de Notícias apreciará os trabalhos e
decidirá da sua publicação, não havendo direito a recurso da sua decisão.
6. Os
participantes nesta iniciativa prescindem, por esse facto, de todos os direitos
autorais pelos trabalhos publicados, excepto aqueles que venham eventualmente a
ser-lhes atribuídos no caso de ser editada uma colectânea em livro.
7. Os 4
melhores trabalhos apresentados, um em cada semana, além da publicação nas
páginas do Diário de Notícias, irão receber como prémio (para cada um dos
trabalhos) uma viagem para duas pessoas (não inclui alojamento) para um destes
destinos: Maputo, Luanda ou Bissau.
8. Para
participar, basta enviar – ao Diário de Notícias, “Uma GuerraCemPalavras”,
Avenida da Liberdade, 266, 1250 Lisboa – um exemplar dactilografado ou
manuscrito em letra legível, assinado com nome próprio ou pseudónimo,
acompanhado dos elementos de identificação do autor (nome completo, bilhete de
identidade, morada e assinatura). Os originais não serão devolvidos aos seus
autores.
9. Os
textos podem ser enviados ao DN até ao próximo dia 7 de Outubro.
10. As
histórias vencedoras (uma por semana) serão publicadas, aos sábados, de 27 de
Setembro a 18 de Outubro.
Texto a Concurso
«Na Guerra para salvar vidas; outras estão em risco»
Eram
oito da manhã quando a mensagem chegou via rádio: uma jovem guineense estava em
dificuldades no trabalho de parto.
Mobilizados
os militares disponíveis e o respectivo transporte – o aldeamento ficava a
quinze quilómetros – logo partimos em seu auxílio munidos dos escassos recursos
que dispúnhamos.
Queríamos
salvar uma vida … ou duas.
Mas,
chegar à mãe angustiada, era necessário percorrer doze quilómetros de picada, a
pé, sujeitos a emboscadas e a rebentamento de minas. Por coincidência, foram
detectadas duas. Chegámos ao destino passadas duas horas.
A
criança, porque estava atravessada na barriga da mãe, foi necessário evacuá-la(s)
de helicóptero para Bissau.
Fantasma
do Xime
Por desconhecimento e, ainda, por falha
de memória em alguns dos detalhes não esclarecidos acima, gostaria de poder
contar com a V. participação, dando-os a conhecer oportunamente.
Porque o camarada Carvalhido da Ponte é
um informante privilegiado nesta história, porque dela fez parte, certamente
que terá algo de muito importante para nos transmitir.
Aguardo notícias.
Um forte abraço para todos, com muita
saúde e energia.
Jorge Araújo.
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