- A
investigação que tenho vindo a efectuar aos arquivos de Amílcar Cabral,
existentes na Casa Comum da Fundação Mário Soares, permitiu-me elaborar mais
uma narrativa, esta relacionada com a História da nossa CART 3494, tendo por
protagonista Mário Mendes (1943-1972), Cmdt do bigrupo do PAIGC que actuava no
triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.
E o
episódio mais marcante da actividade operacional de Mário Mendes ficará ligado,
para sempre, à emboscada que montou na Ponta Coli (Xime), naquele dia 22 de
abril de 1972, sábado, e de que resultou a morte do camarada Manuel Bento
(1950-1972), a única baixa em combate do seu contingente metropolitano.
A morte
de Mário Mendes, em 25 de Maio de 1972, ficará igualmente na historiografia da
guerra, como tendo sido o último Cmdt do PAIGC a tombar na zona da Ponta Varela
(Xime), ocorrida quatro semanas após o episódio anterior.
Em função
do exposto, a investigação deu-nos elementos que permitiram organizá-los numa
perspectiva sociodemográfica, a possível, ajudando-nos a conhecer melhor quem
esteve/a do outro lado do combate durante a nossa presença no Xime.
GUINÉ
Jorge Alves Araújo,
ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo,
1972/1974)
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
MÁRIO MENDES (1943-1972)
- O ÚLTIMO CMDT DO PAIGC A MORRER NO XIME -
1. – INTRODUÇÃO
Durante os últimos
anos, particularmente nos momentos que antecedem os actos de passar a escrito
as memórias historiográficas do CTIG (1972/74), surgem-nos no pensamento, ao
vivo e a cores, algumas das principais imagens daquele palco onde a 22 de abril
de 1972, sábado, iniciámos o «jogo da sobrevivência e da superação permanentes»,
com a sensação de ainda cheirar a pó e a terra vermelha.
Na guerra, a esse
episódio chamam-lhe “baptismo de fogo”, e no nosso caso ele teve lugar na Ponta
Coli [imagens abaixo], local escolhido superiormente para concentrar os
efectivos das NT. Nesse dia a missão estava atribuída ao 4.º Gr Comb,
constituído por 20 operacionais, 2 condutores e o guia/picador Malan Quité.
Após a “conquista diária” desse espaço, cada grupo era dividido em dois
subgrupos, um instalado de manhã e o outro de tarde, situação modelo que vinha
já da “velhice”, cuja missão era garantir a segurança a pessoas e bens que
circulavam na estrada Xime-Bambadinca.
Pelo histórico das
Unidades de quadrícula que nos antecederam, e que estiveram aquarteladas no
Xime em diferentes períodos, nomeadamente a CART 1746 (1968/69), CART 2520 (1969/70)
e CART 2715 (1970/72), sempre considerámos que num futuro mais ou menos próximo
teríamos de passar por essa primeira experiência… não estivéssemos nós num
contexto de guerra.
E aconteceu mesmo,
ainda não tínhamos concluído o terceiro mês.
Em relação a este episódio, a
História do Batalhão 3873, a que pertencia a CART 3494, refere na sua p. 59: “em 220600ABR72 grupo IN emboscou a
segurança da PTA COLI (01 GRCOMB da CART 3494). As NT e Artilharia do XIME pôs
o IN em fuga. Sofremos 01 morto (Furriel), 07 feridos graves e 12 feridos
ligeiros”.
Xime (Ponta
Coli, maio de 1972) – local do combate com o bigrupo do PAIGC, comandado por
Mário Mendes (1943-1972).
A linha
vermelha, ligando o Xime (aquartelamento) e a Ponta Coli (local da segurança),
na estrada Xime-Bambadinca, era o itinerário diário utilizado pelas NT.
Os desenvolvimentos
dos combates travados pela CART 3494
[curiosamente pelo 4.º Gr Comb] e respectivos resultados, quer na primeira
emboscada, a 22 de abril de 1972, quer na segunda, a 01 de dezembro do mesmo
ano, podem ser consultados nas narrativas: P148, P152, P191 e P234.
No presente texto,
o que nos propomos abordar emerge desse contexto a partir de uma interrogação
que há muito formulámos [e certamente o mesmo aconteceu com muitos de ex-combatentes,
em relação a experiências semelhantes], e que só agora encontrámos a competente
resposta, ainda que parcelar.
E a questão era
esta: em cada uma das emboscadas supra [e em todas as outras milhares que
aconteceram em diferentes locais do CTIG ao longo dos treze anos do conflito],
existia uma nuvem entre quem era atacado e quem atacava, ou seja, estávamos
perante uma situação desigual, o que se entende/compreende, pois estas eram as
regras do “jogo”, a camuflagem e a surpresa e a consequente aniquilação do
opositor no menor espaço de tempo.
Não se sabia quem
e quantos estavam do outro lado; os seus rostos, as suas alturas, as suas
vestimentas, os seus equipamentos/armamentos, os seus nomes, as suas idades, as
suas origens, em suma, nada se sabia no início de cada acção, e só com o
desenrolar desta, eventualmente, poderíamos ter alguma resposta a esta
curiosidade.
Partindo dessa
premissa, seguimos em frente com mais uma investigação tendo por fonte
privilegiada a Casa Comum – Fundação Mário Soares, a quem agradecemos.
Ainda que a
informação recolhida seja reduzida, considerámo-la suficiente para produzir
algum conhecimento que, como é hábito, decidimos partilhá-la(o) convosco.
E a pergunta de
partida era: «quem foi Mário Mendes, Cmdt do bigrupo do PAIGC que nos emboscou
a 22 de abril de 1972, na Ponta Coli?», da qual resultou a única baixa em
combate da CART 3494 durante os
cerca de vinte e oito meses da comissão ultramarina, para além de mais
dezassete feridos, entre graves e menos graves, em que apenas cinco elementos
saíram ilesos, um dos quais fomos nós. Estes são os números fidedignos que tive a oportunidade de os escrutinar
naquela ocasião.
2. – MÁRIO
MENDES – CMDT DO BIGRUPO EM ACÇÃO NO XIME
Soube que Mário
Mendes era Cmdt de bigrupo do PAIGC e que actuava no então Sector 2, da Frente
Xitole-Bafatá, em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.
A acção mais antiga que se conhece
foi comunicada a Amílcar Cabral (1924-1973) pelo Cmdt da Frente Leste, Mamadu
Indjai, a 29 de abril de 1969, referindo a esse propósito o seguinte [de acordo
com a nota manuscrita apresentada abaixo]:
Comando Sul
MSG – No dia 20/4/69 os combatentes
do Partido realizaram na estrada Bambadinca/Xime [Ponta Coli] onde os inimigos sofreram
muitas baixas humanas de feridos e mortos. Por nosso lado não houve nada mal.
Foi dirigido por Mário Mendes e Sampui Na Sa – Sector dois – Mamadu Indjai –
29/4/69.
Citação:
(1969), "Mensagem - Comando Sul", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40645 (2016-12-8)
(1969), "Mensagem - Comando Sul", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40645 (2016-12-8)
Citação:
(1966), "FARP - Frente Xitole-Bafatá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40466 (2016-12-8)
(1966), "FARP - Frente Xitole-Bafatá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40466 (2016-12-8)
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07068.099.051
Título: FARP - Frente Xitole-Bafatá
Assunto: Listas das FARP emitidas pelo organismo de
Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra do PAIGC – Frente de
Xitole-Bafatá.
Data: c. 1966
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado
Militar
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
A partir dos dados contidos nessa lista [mapa], que
consideramos como os casos da investigação ou a “amostra de conveniência”, procura-se
compreender melhor quem estava do outro lado do combate, particularmente na
primeira emboscada na Ponta Coli [Xime], a 22 de abril de 1972, dando
indicadores de tendência para outros casos e outras épocas. Com este propósito,
procedemos à organização de alguns desses dados referentes a cada um dos
sujeitos constituintes do “bigrupo de Mário Mendes”, sobre os quais pretendemos
retirar conclusões.
Para o efeito, esses dados foram agrupados quantitativamente
e apresentados em quadros estatísticos de frequências (caracterização da
amostra por idade: a de nascimento e a de adesão ao Partido) e de quadros de variáveis
categóricas em relação aos restantes elementos (ano de adesão ao PAIGC e idade e
anos de experiência cumulativas ao longo do conflito).
Quadro 1 –
distribuição de frequências em relação ao ano de nascimento dos elementos do bigrupo
de Mário Mendes (n-38)
Da
análise ao quadro 1, verifica-se que o ano de nascimento com maior percentagem
(maioria relativa) é 1945 (21.1%) com 8 casos (moda), seguido de 1947 (15.8%),
com 6 casos, e 1942 e 1943 (13.2%), em terceiro, com 5 casos cada.
Quando
analisado por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão
entre os nascidos em 1943 e 1945 (42.2%) (grupo central), enquanto entre 1937 e
1942 e entre 1946 e 1950, os valores são iguais (n-11 = 28.9%).
Quadro 2 –
distribuição de frequências em relação à idade de adesão ao PAIGC dos elementos
do bigrupo de Mário Mendes (n-38)
Da
análise ao quadro 2, verifica-se que existem três idades com maior percentagem
de adesão ao Partido, respectivamente 18, 20 e 21 anos, com 7 casos cada (18.4%),
seguida dos 16 anos, com 4 casos (10.6%). As restantes idades não têm
significado estatístico.
Quando
analisada a adesão ao Partido por períodos, verifica-se que o maior número de
casos (n-16) estão entre as idades de 18 e 20 anos (42.2%), seguido pelo grupo
de idade superior, entre 21 e 26 anos, com 12 casos (31.5%), e o grupo de menor
idade, entre 13 e 17 anos, com 10 casos (26.3%).
Analisada
a adesão ao Partido entre os 18 e 21 anos, idades semelhantes ao período
normativo da incorporação militar na legislação portuguesa, à época, os valores
apontam para uma maioria absoluta com 23 casos (60.5%), seguida por 10 casos
nas idades inferiores (26.3%) e, somente, cinco casos nas idades superiores
(13.2%).
Quadro 3 –
distribuição de frequências em relação ao ano de adesão ao PAIGC dos elementos do
bigrupo de Mário Mendes (n-38)
Da
análise ao quadro 3, verifica-se que o ano onde se registou maior adesão ao
PAIGC, com maioria absoluta, foi 1963, com 21 casos (55.3%), seguido de 1962,
com 10 casos (um dos quais Mário Mendes) (26.3%). Os anos de 1964 e 1965
registaram 7 casos cada (7.9%).
Quando
analisada a partir da soma dos dois primeiros anos (1962 + 1963), anos de
preparação e início do conflito, a percentagem sobe para 81.6% (n-31).
Quadro 4 –
distribuição de frequências em relação à idade verificada ao longo do conflito,
contados após a adesão individual ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de
Mário Mendes (n-38)
Da
análise ao quadro 4, e partindo da hipótese meramente académica de que o
bigrupo se tinha mantido constante ao longo do conflito, pelo menos até 22 de
abril de 1972, data da emboscada sofrida pela CART 3494 (algo que não se pode
garantir ou confirmar), Mário Mendes teria, então, vinte e nove anos [sombreado
castanho]. Os restantes elementos teriam a idade referida na linha [sombreado
verde] do ano de 1972.
Quadro 5 –
distribuição de frequências em relação ao número de anos de experiência na
guerrilha ao longo do conflito, contados após a adesão ao PAIGC, no caso dos
elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)
Da
análise ao quadro 5, e partindo da hipótese meramente académica apresentada no
quadro anterior, Mário Mendes teria, então, dez anos de experiência na
guerrilha [sombreado castanho], bem como de outros nove combatentes. Os restantes
elementos teriam os anos de experiência referidos na linha [sombreado verde] do
ano de 1972.
3. – MÁRIO
MENDES – 25 de maio de 1972, o dia da sua morte
Quatro semanas depois de ter organizado e comandado a emboscada à
CART 3494 [4º Gr Comb] na Ponta Coli, viria a morrer na acção «GASPAR 5»,
realizada no dia 25 de maio de 1972, 5.ª feira, por seis
Gr Comb [três da CART 3494 e
três da CCAÇ 12].
Recupero
o que escrevi no P191, por nela ter participado.
O
“encontro” com Mário Mendes aconteceu na Ponta Varela [Xime – mapa acima],
tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnicov, bem como três carregadores da mesma
e documentos que davam conta do calendário das “acções” a desenvolver naquela
zona pelo seu bigrupo.
Depois
de alguns elementos (5/6) do seu grupo terem sido detectados pelas NT na
referida acção, e que não se sabia, naturalmente, de quem se tratava, um
daqueles elementos [Mário Mendes] liderou uma estratégia de fuga que não lhe
foi, desta vez, favorável, por via de lhe(s) ter sido movida perseguição,
obrigando-nos a serpentear várias vezes os mesmos trilhos, entre itinerários de
vegetação e clareiras.
Por
isso, estou crente que Mário Mendes, a partir do momento em que ficou sem rumo
certo e sem portas de saída, movimentando-se em várias direcções, sem sucesso,
tomou consciência de que aquele dia seria o último da sua vida. E foi … por intervenção
de elementos da CCAÇ 12.
4. –
CONCLUSÕES
Chegado a este ponto, e partindo da análise aos resultados
apurados e apresentados nos quadros acima, é possível concluir que durante o
combate travado entre os elementos do bigrupo de Mário Mendes e do 4.º Gr Comb
da CART 3494, na Ponta Coli, existiram diferenças significativas nas seguintes
três variáveis.
1. – Idade: [bigrupo – 27.9] ≠ [4.º Gr Comb – 21.6]
2. – Quantidade de elementos: [bigrupo – ⅔ ] ≠ [4.º Gr Comb – ⅓]
3. – Anos de experiência no conflito: [bigrupo – 8.9] ≠ [4.º Gr Comb
– 0.25].
Porque se sabia pouco sobre o Cmdt Mário Mendes, e dos elementos
que liderava, este é o meu pequeno contributo para o seu aprofundamento.
O que se pode dizer mais…?
Deixo este estudo à vossa consideração.
Obrigado
pela atenção.
Um
forte abraço de amizade e um óptimo 2017.
Jorge
Araújo.
26DEC2016.
Vd post anterior da série; http://cart3494guine.blogspot.pt/2016/12/p293-perdemos-16-camaradas-e-1.html
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