Mensagem de,
Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Guiné, Xime-Mansambo, 1972/1974)
Com data de : 13 de Julho de 2018
Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Os meus melhores cumprimentos.
Apresento hoje neste espaço de partilha um tema novo, este
relacionado com a mobilidade das populações por efeito da guerra no CTIG.
Trata-se de uma avaliação (balanço) apresentada no relatório
assinado por José Araújo, em Outubro de 1971, e remetido à Direcção do PAIGC na
sequência de uma missão ao Sector de Quitafine, na Frente Sul, por si realizada
durante os meses de Setembro e Outubro desse ano.
Com um forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
Citação: (s.d.), "Tabanca no interior da Guiné, ao fundo
distinguem-se mulheres cozinhando", CasaComum.org,
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_
dc_43022 (2018-4-13), com a devida vénia.
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1. -
INTRODUÇÃO
Porque
tudo na vida é processo e projecto, conceitos que se reformulam na dialéctica “ordem/desordem”
para dar lugar a uma nova “ordem”, apresento hoje neste espaço de partilha mais
um tema novo, se a memória não me atraiçoa, este relacionado com a “mobilidade
das populações da Guiné, do nosso tempo, por efeito da guerra”.
É
que, de facto, o comportamento psicossocial das populações no início do
conflito ficou marcado, ou foi influenciado, inexoravelmente, pela sucessão de
acontecimentos, que deram lugar a uma inevitável “desordem” social e étnica,
alguns ainda antes do 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite,
localizado na região de Quinara, e que depois se alargaram cumulativamente a
todo o território do CTIG.
A
oportunidade desta apresentação, a meu ver, enquadra-se no âmbito das imagens
que o nosso camarada tertuliano ex-Alf Luís Mourato Oliveira tem vindo a
partilhar no blogue da «Tabanca Grande», e que estiveram guardadas durante mais
de quatro décadas no seu baú de memórias.
Por
isso é justo e oportuno agradecer-lhe essa disponibilidade e atenção, ele que
ficou também na história da guerra por ter sido, em função dos acontecimentos
do “25 de Abril”, o último Cmdt do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá) antes da
proclamação da independência da Guiné, declarada em 23 de Setembro de 1974.
Por
outro lado, as últimas imagens postadas nos P18504-LG e P18517-LG, tendo por
pano de fundo a delegação do PAIGC que visitou Missirá em Julho de 1974 no âmbito
dos acordos de cessar-fogo, e com as quais se fecharia o ciclo temporal deste
conflito armado, que uns chamaram «do ultramar» e outros «de libertação»,
conforme a sua posição no cosmo, continuam a dar lugar a novas reflexões, sinal
que se mantêm bem vivas, em cada um de nós, algumas das memórias gravadas ao
longo das múltiplas vivências desses tempos ultramarinos, independentemente do
lugar, época e contexto.
Porque
nos postes acima se referem as imagens de alguns dos actos finais ocorridos na
mata do interior do território (Missirá), proponho voltar ao início do
conflito, apresentando um pedaço da “geografia social e étnica” dessa época, em
particular da região da Frente Sul, especificamente do Sector de Quitafine, por
onde tenho “circulado” nos últimos tempos (entenda-se, investigado), de modo a
fazer-se a ponte temporal de mais de uma década.
Em
função do exposto, é difícil não concordar que a mobilidade das populações, por
efeito da guerra, foi uma realidade, obrigando-as a tomar opções concretas no
imediato, cujas decisões só tinham três hipóteses principais: a primeira,
ficando sob o controlo da “ordem instalada”; a segunda, transitando para além
das fronteiras (exterior), e a última, aceitar fazer parte do universo da
guerrilha nacionalista.
Para
a elaboração deste trabalho socorri-me, uma vez mais, de um documento existente
nos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), disponível na Casa Comum – Fundação
Mário Soares, intitulado «Relatório sobre o Sector de Kitáfine», assinado por
José Araújo, Comissário Político e da Produção para a Frente Sul, datado de 16
de Outubro de 1971, com trinta e nove páginas (sitio: hdl.handle.net/11002/fms_dc_40058).
Quanto ao perfil de José
Araújo, de nome completo José Eduardo de Figueiredo Araújo (1933-1992), à data
do relatório era também membro do Conselho Superior da Luta e do Comité
Executivo da Luta. Numa resenha biográfica, consta que este dirigente do PAIGC
nasceu em 1933 na cidade da Praia, Ilha de Santiago, em Cabo Verde. Aí fez os
seus estudos primários. Em 1942, com apenas 9 anos, seguiu com a família para
Angola, uma vez que o seu pai era funcionário da Fazenda (Finanças). Com uma
bolsa de estudos atribuída pelos Correios de Angola, José Araújo desloca-se
para Lisboa com o objectivo de realizar os seus estudos universitários na
Faculdade de Direito de Lisboa, onde, em 1961, concluiu a sua licenciatura em
Direito.
Porém, no ano anterior
tinha-se tornado militante do MPLA na clandestinidade, depois de ter-se
envolvido numa intensa actividade associativa universitária. Em 1961 faz parte
do grupo de africanos universitários que decidem fugir para França. Seguiu-se depois
o Gana. Após ter militado no MPLA, associa-se ao PAIGC, vindo a instalar-se em
Conacri, com a sua família, dois anos depois, em 1963. Tinha 30 anos.
Com a independência da
Guiné-Bissau, as suas novas funções políticas foram desenvolvidas como ministro
do Secretariado. Entre 1975 e 1980, foi ministro sem pasta. Após essa data
transferiu-se para Cabo Verde, onde desempenhou as mais elevadas
responsabilidades políticas no novo contexto, em particular o cargo de ministro
da Educação. Viria a falecer na sua terra natal, exactamente dezanove anos
depois do assassinato de Amílcar Cabral, em 20 de Janeiro de 1992 (adap.: pascal.iseg.utl.pt/~ cesa/images/files/
diaspora2016_texto4.pdf). À data da sua morte era
casado com Amélia Araújo, a locutora da “Rádio Libertação” conhecida entre nós
como “Maria Turra” (vidé P15434-LG).
2. - A
MOBILIDADE DAS POPULAÇÕES NO SECTOR DE QUITAFINE POR EFEITO DA GUERRA –
TABANCAS DESAPARECIDAS
A propósito do conteúdo do “relatório” elaborado por José Araújo, este refere que
ele teve por base a sua missão ao Sector de Quitáfine, realizada entre 14 de
Setembro e 8 de Outubro de 1971. Aí teve a oportunidade de contactar com todos
os responsáveis desse sector, incluindo a visita a duas bases do Exército (em
Comissorã e em Cabonelo), ao Hospital (em Campus) e ao Posto Civil (em
Cassacá), local histórico para o PAIGC, pois foi aí que realizou o seu 1.º
Congresso, que decorreu entre 13 e 16 de Fevereiro de 1964.
Acrescenta
que o Sector de Quitafine foi dos primeiros em que se fez a mobilização e se
instalou a luta armada. Foi aí, no mato de Campus, que, dizem os pioneiros,
nasceu a primeira “barraca” [acampamento] do partido no Sul, ainda antes da
guerra.
“A situação criada à aviação inimiga [NT] com
a instalação de antiaéreas em Quitafine e as pesadas derrotas que sofreu na sua
tentativa de recuperação dessas armas, talvez expliquem a sanha com que se
dedicou à destruição de tudo quanto via mexer em Quitafine, nos anos 68 e 69. A
partir de 69 (fins), Quitafine começou a “arrefecer”. […]
“É preciso ter-se em conta este
passado para se compreender muito da actual fisionomia de Quitafine e os seus
problemas. Quitafine, que era das áreas mais povoadas do Sul, só tem hoje [1971] 12 tabancas,
organizadas em 9 comités. Repare-se que aquilo a que hoje se chama Tabancas e a
que se dão nomes antigos, pouco tem a ver com as antigas tabancas. As
populações, que conservaram os nomes das suas antigas tabancas, estão dispersas
nos tarrafos e num ou noutro mato mais favorável. Além disso, grande parte (se
não a maioria) da população das tabancas antigas ainda “presentes” dispersou-se
pelas tabancas fronteiriças da República da Guiné, quando não foi juntar-se aos
tugas. Penso também que alguns erros cometidos no trabalho político inicial
devem explicar a actual fisionomia humana de Quitafine” (op. cit., pp 2-3).
No
Relatório estão identificados os nomes de quarenta e uma Tabancas que deixaram
de existir na região de Quitafine, e que serão referidas abaixo.
A
organização da sua apresentação contém alterações em relação à original. Como
metodologia seleccionada, optámos pela ordenação alfabética para melhor
localização da ordem estabelecida. Quanto ao conteúdo textual, existem algumas
(pequenas) correcções, particularmente no que concerne à construção semântica e
unificação da descrição, mas que não alteram o sentido apresentado.
Citação: Mikko
Pyhälä (1970-1971), "Tabanca", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.069
(2018-4-13), com a devida vénia.
Eis os nomes das Tabancas desaparecidas no
Sector de Quitafine por efeito da guerra (n=41)
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● BANERE –> Tabanca de
Fulas. Retiraram-se para CAMABANGA e SATENIA, na República da Guiné. O chefe –
MAMASSALU – encontra-se na segunda destas tabancas.
● BIRCAMA –>
Tabanca de Beafadas. Foram todos para os tugas.
● CABOBAR –>
Tabanca de Nalús, pequena. Uma morança só. Toda a gente retirou-se para GÃ BIT
FONE, CARAQUE e BISSAMAIA, na República da Guiné.
● CABOCHANQUE –>
Tabanca de Fulas. Foram todos para a República da Guiné, tendo-se instalado em
várias tabancas, em especial na de CUN-HA e CAMABANGA.
● CABOCHANQUEZINHO –>
Tabanca de Fulas e Tandas. Os tandas espalharam-se na República da Guiné, longe
da fronteira. Os Fulas foram para os tugas, à excepção de duas pessoas (BEILA
BALDÉ e a irmã), que foram para CALAFIMETE, na República da Guiné.
● CABOMA –> Tabanca de
Sossos. Só duas pessoas foram para os tugas. O resto juntou-se à população de
CAMISSORÃ.
● CABONEPO –>
Tabanca de Sossos e Beafadas. Havia também um caboverdiano de nome LEÃO
GABRIEL. O caboverdiano foi para Dakar (ao que parece). O resto foi para
CARATCHE, GAFARANDE e CABACO, na República da Guiné. Só ficou um Homem Grande,
de nome IDRISSA KEITA, que se instalou no mato, em CASSACÁ.
● CACAFAL –>
Tabanca de Nalús. Toda a gente foi para os tugas, à excepção do camarada ANSUMANE
DJASSI, do Exército, que estava em FULA MORI.
● CACOCA –> Tabanca de
Sosso, Nalús, Bagas, Fulas e Lândumas. Só se retirou uma família (CANFORSECO
KEITA), que está em CAPOQUENE. O resto ficou com os tugas.
● CADUCÓ –> Tabanca
essencialmente de Nalús. Foram para a fronteira, tendo-se instalado em CAN-HOR,
uma parte, e a outra em CATCHIQUE.
● CAIANQUE –>
Tabanca de Nalús. Refugiaram-se em CAMAÇO e CATCHIQUE, na República da Guiné,
● CAIÂNTICO –>
Tabanca de Beafadas. Foi gente para os tugas e o resto para HAMDALAYE e
CABUM-ANE, na República da Guiné.
● CALAQUE –>
Tabanca de Sossos, Fulas, Manjacos e Lândumas. À excepção de duas moranças de
Manjacos, toda a gente retirou-se para tabancas fronteiriças da República da
Guiné. As duas moranças de Manjacos instalaram-se no mato de CALAQUE.
● CAMBAQUE –>
Tabanca de Nalús. A maioria da população foi para os tugas. Alguns elementos
foram para CASSAMA e CARAQUE, na República da Guiné.
● CAMBEQUE –>
Tabanca de Nalús. Retirou para BAKILONTON E IAMAN, na República da Guiné.
Alguns foram depois daí para os tugas.
● CAMBRAZ –>
Tabanca de Mandingas. Toda a população juntou-se aos tugas.
● CAMECONDE –>
Tabanca de Nalús. Só retiraram duas famílias (ALMANI KEITA e BRAIMA CAMARÉ),
que estão em CASSANSSANE, na República d Guiné. O resto ficou com os tugas.
● CAMISSORÃ –>
Tabanca de Sossos, Nalús, Mandingas, Beafadas e Fulas. Os Fulas foram todos
para a República da Guiné. Houve também gente de outras tribos que se refugiou.
Ficou pouca gente, que se refugiou nos tarrafos de CAMPUM, e que tem o seu
comité.
● CAMPEANE –>
Tabanca de Nalús e Sossos, essencialmente. Refugiaram-se igualmente em CAIETCHE
e CATCHIQUE.
● CAMPEREMO –>
Tabanca de Nalús e Beafadas. Uma morança de beafadas está em Hamdalaye. Uma
outra (Mamadu Dabo) está para os lados de CANELAS. Duas famílias estão em
CARATCHE (Ansumane Dabo e Tomás Dabo). O resto foi para os tugas.
● CAMPO –> Tabanca de
Fulas. Retiraram-se para CASSEMAQUE, BAGADAYE, e outras, na República da Guiné.
● CANDEMPANE –>
Tabanca de Nalús. Só ficou o camarada ANSUMANE DABO, que é actualmente
instrutor das FAL no sector. O resto foi para os tugas.
● CANFEFE –>
Tabanca de Sossos e Nalús. Retiraram-se todos para tabancas da República da
Guiné.
● CANTEDE –>
Tabanca de Nalús. Toda a população juntou-se aos tugas.
● CANTOMBOM –>
Tabanca de Nalús. Foram todos para os tugas.
● CARIMPIM –>
Tabanca de Nalús. Toda a população refugiou-se em CARATCHE.
● CASSENTEM –>
Tabanca de Nalús e Balantas. Os Nalús foram para CALAFIMET e CAMAÇO, na
República da Guiné. Os Balantas mantiveram-se no interior, tendo-se instalado
nos tarrafos de TAFORE e CASSEBETCHE.
● CASSOME –>
Tabanca de Nalús. Instalaram-se em CARAQUE, na República da Guiné.
● CATONAIE –>
Tabanca de Nalús. Foram todos para os tugas.
● CATRIFO –>
Tabanca de Nalus. Toda a população foi para os tugas, à excepção da família ALI
KEITA, que retirou-se para MAMADIA, na República da Guiné.
● CATUNAIE –>
Tabanca de Nalús. Ficou uma família (ABDU CAMARÁ) nos tarrafos de CASSEBETCHE.
O resto refugiou-se em CASSEMAQUE, na República da Guiné.
● CATUNGO –>
Tabanca de Nalús. Foram todos para os tugas, à excepção de uma mulher – MAMA
CAMARÁ – que está em CARATCHE, na República da Guiné.
● CAULACA –>
Tabanca de Sossos e Nalús. Dessa tabanca, que se tinha retirado para a
fronteira com a República da Guiné, toda a gente voltou para dentro. Estão
instalados nos matos de CASSACÁ.
● CUGUMA –> Tabanca de
Nalús. Foram todos para CACINE.
● CUNFA –> Tabanca de
Nalús. Toda a tabanca foi para os tugas, à excepção de uma família (AMADU
DABO), que retirou-se para IAMANE, na República da Guiné.
● DÉBIA –> Tabanca de
Nalús. Alguns elementos refugiaram-se em TANENE e IAMANE, outros foram para os
tugas.
● MANSABATÚ –>
Tabanca de Nalús. Foram todos para os tugas, só tendo ficado uma pessoa – um
camarada, o enfermeiro do bigrupo em missão na área, de nome MAMADU KEITA, mais
conhecido por TAM ATNA. [Este bigrupo tinha como Cmdt Cinur N’Tchir, natural de
Cafine, onde nasceu em 1943. Actuava na Frente «Buba – Quitafine» (referência a
baixo, in: hdl.handle.net/11002/fms_dc_40468)].
● SANCONHÁ –>
Tabanca de Beafadas. Foram poucos para os tugas, os outros estão para os lados
de SANSALÉ, na República da Guiné.
● TADI –> Tabanca de
Nalús. Toda a população refugiou-se em CARATCHE.
● TARCURÉ –>
Tabanca de Nalús. Foram todos para os tugas.
● TUBANDI –>
Tabanca de Djacancas [um subgrupo da etnia Mandinga]. Retirou para CAPOQUENE e
N’DJAILÁ, na República da Guiné.
Citação: (1963-1973),
"Guerrilheiros do PAIGC numa tabanca", CasaComum.org, Disponível
HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43109 (2018-4-13), com a devida vénia.
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Será
que alguém ouviu falar ou esteve em alguma destas tabancas?
Aguardo.
Obrigado pela atenção.
Com
um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge
Araújo.
13JUL2018.
1 comentário:
Um excelente Trabalho Documental.
Abraço
SOL da Esteva
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