MSG de: Jorge Alves Araújo,
ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494(Guiné, Xime-Mansambo,
1972/1974) com data de: 28AGO2018
Os meus melhores cumprimentos.
Anexo mais um texto relacionado com as nossas memórias da
Guerra na Guiné elaborado no âmbito do meu dossier «(D)o Outro Lado do
Combate».
Trata-se da Parte I, de um total de três, onde abordo os
factos e os resultados dos combates entre as NT e os guerrilheiros do PAIGC, na
região de Farim.
Com um forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
BALANÇO
DOS COMBATES ENTRE A CCAÇ 2533 E CCAÇ 14 E O “CORPO DE EXÉRCITO” 199-B-70
[PAIGC]
NO SECTOR DE FARIM
- A MORTE DO CMDT DO BIGRUPO ANSÚ BODJAN (1944-1971) -
Citação:
(1963-1973), "Coluna de guerrilheiros do
PAIGC avançando por um trilho", Casa Comum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43531
(2018-4-20), com a devida vénia.
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1. – INTRODUÇÃO
Numa retrospectiva histórica e
cronológica, muitas das narrativas aqui apresentadas têm sido escritas na
primeira pessoa. Porém, quando nesse âmbito se recorre e intercala a divulgação
de factos, feitos e resultados grafados nas brochuras elaboradas pelas
respectivas Unidades seleccionadas, cada novo texto é mais uma peça do puzzle
da memória da «Guerra do Ultramar» – a da Guiné – por via da adição de novas
imagens impregnadas de vivências e experiências, singulares e colectivas,
independentemente da época, do lugar e do contexto.
Agora,
com o acesso público ao acervo documental de Amílcar Cabral (1924-1943)
existente na Casa Comum – Fundação Mário Soares, passou a ser possível
“circular” entre os dois lados do conflito, cruzando as diferentes versões no
sentido do seu aprofundamento factual na busca da verdade possível, como é o
presente exemplo.
Assim
sendo, apresento o resultado de mais um trabalho de pesquisa, nascido da adição
de informações diversas obtidas de cada um dos lados do combate, título com que
baptizei estas narrativas específicas, cujos episódios estão a uma distância de
quase meio século. Trata-se de reconstituir a história com mais dados.
2. – CONTEXTOS
E UNIDADES ENVOLVIDAS
Os episódios que me propus
partilhar neste espaço de ex-combatentes, e que constam nesta narrativa como
objecto central da pesquisa, inscrevem-se no quadro das actividades
operacionais desenvolvidas pela Companhia de Caçadores 2533 [CCAÇ 2533], de
origem metropolitana, e pela Companhia de Caçadores 14 [CCAÇ 14], de
Recrutamento Local.
Esses factos, que serão identificados por ordem
cronológica ao longo do texto, ocorreram no Sector de Farim, situado na margem
Norte do Rio Cacheu, na Região do Oio [ver mapa abaixo], e dizem respeito aos
combates travados pelas duas Unidades das NT, na sequência de duas emboscadas
montadas pelo “Corpo de Exército” 199-B-70 [PAIGC], a primeira a 14 de Dezembro
de 1970 (2.ª feira) e a segunda a 30 do mesmo mês (4.ª feira), tendo-se
verificado baixas de ambos os lados.
No mapa acima [Frente Norte] a
seta a vermelho indica o território onde ocorreram os combates, localizados no
itinerário entre Farim e Jumbembem, o primeiro envolvendo a CCAÇ 2533
(14Dez1970) e o segundo a CCAÇ 14 (30Dez1970), tendo do outro lado da
“barricada” o bigrupo do “Corpo de Exército” 199-B-70, liderado pelo Cmdt Ansú
Bodjan.
As setas a azul correspondem
aos locais de penetração das forças do PAIGC vindas das bases existentes em
território da República do Senegal, em particular os corredores de “Lamel” e
“Sitató”.
2.1
– A EMBOSCADA DA CCAÇ 2533 – A
14DEZ1970
Da consulta realizada às
“Histórias” desta Unidade, encontrámos uma referência a este episódio no P13390-LG,
escrito pelo ex-alf Armando Mota, do 1.º GrComb, ao qual deu o título de
«ENCONTRO EM LAMEL».
Pelo valor historiográfico no
contexto da guerra e como suporte documental deste trabalho, decidi transcrevê-lo
na íntegra.
A
esse propósito, Armando Mora disse: “Naquele
dia 14 de Dezembro de 1970, o 1.º
Pelotão fora escalado para transportar e
fazer a segurança de um grupo de africanos que iria fazer a capinagem junto à
estrada em Lamel, dado que se verificava que aquele corredor estava a ser muito
utilizado para a infiltração do IN no território, e o capim ajudava a esconder
a seu presença.
O
3.º Pelotão partira antes, para fazer a picagem da estrada até ao local dos
trabalhos. Eram 8h10, após fazermos a chamada do pessoal da capinagem,
distribuímos os trabalhadores pelas viaturas e partimos.
Passados
alguns 15 minutos chegámos ao Bolumbato, onde avistámos a equipa de picagem.
Decidi que a coluna esperaria ali, pois era mais seguro do que seguir em andamento
lento atrás do pelotão da picagem.
Toda
a gente desmontou das viaturas, montámos a segurança como habitualmente e
ficámos por ali, descontraidamente, lembro-me de tirar uma foto ao soldado
Guilherme [João Bento Guilherme] do Batalhão de Farim [BCAÇ 2879], condutor da
minha viatura, a Berliet que seguia à frente.
Só
próximo do fim da recta que antecede a rampa para Lamel, avistei o último dos
elementos do 3.º Pelotão que nos fazia sinais para encostar. Pedi para parar e
entrar no mato à direita pois o IN estava a atacar do lado esquerdo (Norte).
Ouvi
perfeitamente 3 ou 4 tiros na nossa direcção, que não nos atingiram, saltei
para o chão, atravessei a estrada e instalei-me enquanto o resto do 1.º Pelotão
estacionava e tomava também posições. Ouvi uma rajada bastante próxima e
perguntei quem tinha feito fogo… o fogo não era nosso. Íamos começar a avançar
quando o Fonseca me disse que o soldado Guilherme [condutor] estava caído e
ferido. Arrastámo-lo para a estrada, inconsciente e logo me apercebi que era
sério.
Como estava de pistola, pedi a
G3 emprestada ao Fonseca e fui buscar o nosso enfermeiro que me confirmou que
era muito grave. Decidi evacuá-lo imediatamente para Farim. Desloquei-me à 2.ª
viatura para conseguir ajuda no transporte do ferido, mas ao aperceber-me do
drama e para facilitar, o soldado Solipa ofereceu-se pois não tínhamos
condutor, para conduzir a viatura dali para Farim, e corremos os dois para
junto do grupo que protegia o ferido. Ainda debaixo de fogo, o Solipa manobrou
a Berliet e carregámos o Guilherme já inconsciente. Partimos, eu o enfermeiro e
mais três soldados rapidamente
para Farim. Recordo-me de lhe segurar a cabeça
para não se magoar no chão da viatura, enquanto com a outra mão me segurava à
estrutura do banco corrido. No outro extremo o Evangelista segurava-lhe as
pernas, também deitado e agarrado ao banco com uma mão. As minhas pernas já iam
fora do estrado da viatura e era difícil manter a posição dada a velocidade da
Berliet e as irregularidades da picada.
Acreditávamos
que ia valer a pena…
Foi
um esforço em vão, inglório. Marcou-nos a todos também… Aqui destacou-se o
soldado Solipa ex-condutor e condenado por indisciplina, pelo comando de
Bissau, a “fazer a tropa connosco” no mato.
O
soldado Solipa foi louvado pela atitude de solidariedade com um camarada,
debaixo de fogo. Enviei à família do soldado Guilherme uma nota de sentimento
com a foto que lhe tirei vinte minutos antes de falecer, descrevendo a acção
onde caiu. Não obtive resposta e nunca mais comunicámos”.
[O camarada João Bento
Guilherme era natural da Vila de Fazendas de Almeirim].
Ass. Alf. Armando Mota, 1.º
Pelotão
2.2
– A EMBOSCADA DA CCAÇ 14 – A 30DEZ1970
Depois de concluída no C.I.M. (Centro de
Instrução Militar), em Bolama, a sua formação/instrução em finais de Outubro de
1969, a Companhia de Caçadores 14 [companhia das etnias mandinga e manjaca -
ex-CCAÇ 2592] rumou nos primeiros dias de Novembro de 1969 para a zona
operacional que lhe tinha sido destinada – CUNTIMA, mesmo junto à fronteira com
a República do Senegal.
Cuntima.
Tabanca no Senegal. Foto do álbum do camarada Humberto Nunes (ex. alf mil Cmdt
do 23.º Pel Art, Gadamael Porto e Cuntima, 1972/74) – P10340-LG, com a devida vénia.
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Para caracterizar a actividade
operacional da CCAÇ 14, recorremos aos depoimentos do camarada ex-fur Eduardo
Estrela (Cuntima, 1969/71). No P11365-LG, ele refere: “Em Cuntima, a actividade operacional era intensa pois estavam no mato
permanentemente dois ou mais grupos de combate, por períodos de quarenta e oito
horas. A guarnição de Cuntima, normalmente composta por duas companhias
operacionais, Pelotão de Obuses e
Pelotão de Milícias, para além das
interdições ao ‘corredor de Sitató’, fazia picagens à estrada, escoltas às
colunas para Farim, segurança próxima e afastada ao aquartelamento e as
operações militares que obrigavam a utilização de maiores meios.
As colunas a Farim eram
diárias e o desgaste físico e psíquico muito grande, pois volta não volta o
PAIGC aparecia. (…) Em Farim fazíamos interdição ao ‘corredor de Lamel’, numa
época em que o PAIGC estava muito activo. De tal modo activo que entre o início
de dezembro de 1970 e meados de janeiro de 1971, a guarnição do BCAÇ 2879
sofreu algumas baixas, entre mortos e feridos”.
Por ausência de testemunho escrito relacionado
com esta emboscada sofrida pela CCAÇ 14, em 30 de Dezembro de 1970, apenas
podemos acrescentar que neste combate aquela unidade das NT registou dois
mortos, um do recrutamento local e outro do contingente metropolitano, a saber:
2.3
– A ACTIVIDADE OPERACIONAL DO “CORPO DE
EXÉRCITO”
199-B-70
(1970/1971)
No
âmbito deste trabalho, apurámos que o “Corpo de Exército” 199-B-70 foi criado
durante o mês de Novembro de 1970, na Frente Sul, tendo Nino Vieira (1939-2009)
tomado a iniciativa de enviar uma carta, de Candjafara, a Aristides Pereira (1923-2011),
datada de 18 desse mês, informando-o desse facto.
Citação:
(1966-1974), "Relatório remetido por Nino
Vieira a Amílcar Cabral expondo a situação na fronteira com a República da
Guiné, designadamente os ataques entre Kebo e Guileje", CasaComum.org,
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40775 (2018-4-20).
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Como
elemento informativo oficial, e por isso importante para melhor se compreender
o contexto e as dimensões das actividades subversivas do PAIGC na Frente Norte,
particularmente na avaliação e controlo dos diferentes factores com elas
relacionadas, localizámos um documento elaborado por Osvaldo Vieira
(1938-1974), à época membro do Conselho Superior de Luta e do Comité Executivo
da Luta, de 9 de Agosto de 1971.
Partindo
da análise do conteúdo, circunscrevemos as partes que melhor se enquadram na
presente temática, não deixando de reproduzir o texto na íntegra.
Osvaldo
Vieira refere que após realizar a sua missão de inspecção no Norte [Frente],
concluiu que a situação era razoável, embora a falta de homens e de munições
eram um problema bastante sério, principalmente na Região do Canchungo
[ex-Teixeira Pinto] e outros Sectores como Naga e Morés. Para além disso, as
actividades das Forças Armadas eram consecutivas e a maior parte delas com
bastante êxito, e que nos últimos tempos têm causado ao inimigo [NT] duras
perdas em homens e em materiais de guerra. Quanto ao comportamento dos
camaradas em geral era bastante bom e com maior disciplina.
Aquando
da sua entrada em território da Guiné, somente se encontrava um “corpo do
exército”, o n.º 199-C-70, que fazia as suas actividades na Frente
Nhacra-Morés. Os restantes “corpos de exército” encontravam-se na linha da
fronteira com a República do Senegal, exercendo as suas missões naquela área.
Quanto
aos outros dois “corpos de exército”, 199-A-70 e 199-B-70 [aquele que nos
interessa] encontravam-se na linha de fronteira a fazer missão e logo que ela esteja
cumprida, irão para o interior do país [Guiné], segundo a determinação de
Amílcar Cabral [SG]. Em relação às forças locais [FAL] encontram-se
estacionadas no Cassu, S. Domingos, Camparada, Ingoré, Sano, Cumbamore e
Faiarte. Também existe um grupo no Ermancono, na linha de fronteira, que tem
como tarefa apoiar a entrada de munições e tudo o que se refere a necessidades
do exército.
Tem havido certas fugas [deserções] no seio do “corpo de exército”
dos camaradas que vieram para o reforçar, especialmente os oriundos do Sul. Quanto
à fuga em direcção à fronteira [Norte] tem havido muito raramente, que, segundo
ele, é devido à organização que se nota no interior do exército.
Citação: (1971),
"Relatório de missão de inspecção à actividade das Forças Armadas no
Norte", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40059 (2018-4-20), com a devida vénia.
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2.4
– BALANÇO DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DO
“CORPO DE EXÉRCITO” 199-B-70 (1970/1971)
Para
concluir o primeiro fragmento desta narrativa, importa agora dar conta do que
consta no relatório, tipo “caderno de apontamentos”, manuscrito pelo
responsável militar do “Corpo de Exército” 199-B-70, Cmdt Braima Bangura,
também ele membro do Conselho Superior de Luta e do Comité Executivo da Luta. O
documento foi elaborado em Ziguinchor [República do Senegal] e tem a data de 24
de Dezembro de 1971.
Citação: (1971),
"Relatório da acção do CE [Corpo de Exército] 199-B70, desde a sua
formação, em Dezembro de 1970, até ao final do ano de 1971.",
CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40099
(2018-4-20), com a devida vénia.
|
Continua…
À vossa consideração.
Com
um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge
Araújo.
27AGO2018.
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