Texto recuperado no Facebook de: ALEGRIA FAUSTINO, Ex. Furriel Enf. da 3ª Companhia do BCAÇ 4514/72 que esteve em: Jumbembém, Guidage, Jemberém e Geba. Foi seu CMDT Cap Mil Infª Jorge Manuel Pedroso de Oliveira Martins.
Dados extraidos do:https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com com a devida vénia.
Enviado pelo Alegria Faustino.
“Guidage, o próprio nome, no contexto do conflito, assustava, por tudo
aquilo que ali havia tido lugar, em Maio de 73. Guidage, meses de Junho, Julho
e Agosto de 73, tempo de acalmia, uma espécie de guerra em "paz".
Tivemos alguns contactos com o in, sempre em fuga. Estávamos em plena época das
chuvas e o in transferiu para sul, a sua combatividade. Recordo tudo, como se
tudo tivesse acabado de acontecer. Saímos cedo, cerca das 7 horas da manhã, uma
saída a nível de companhia, em missão de patrulha do nosso sector. O regresso
foi ao entardecer, com chuva intensa e trovoada sobre nós. As gotas de água
feriram o rosto e os punhos, como agulhas, tal a velocidade imprimida na nossa
progressão de regresso ao aquartelamento. Estava encharcado, o peso da bolsa de
enfermeiro incomodava sobre as costas, as mãos "coladas" à G3, com
força diabólica, silêncio absoluto, ouvidos e visão atentos a tudo. Só tive
tempo de mudar de camuflado e botas. Fui imediatamente informado da chegada de
uma senhora que havia pisado uma mina, no seu regresso da bolanha e tinha
ficado sem uma parte da perna. Corri de imediato para uma espécie de abrigo
enfermaria, escuro como breu, cheio de humidade e o cheiro a bafio,
misturava-se com o cheiro da carne humana queimada pela explosão. A Senhora
estava nos últimos dias de gestação e na impossibilidade de uma evacuação,
havia que estabilizar a situação e, dados os sinais de um iminente parto,
proceder ao acto. Foi, simplesmente, horrível. Primeiro, cuidar da perna
decepada, com os procedimentos que exigia a circunstância: separar com o
bisturi os tecidos queimados, diminuir e aumentar a intensidade do garrote,
deixar fluir o sangue o menos possível, morfina, envolver o que restava da
perna num penso gigantesco e logo a seguir, o parto. Tínhamos falado disso na
Escola de Enfermagem do Exército e os meus conhecimentos sobre a matéria eram
escassos. A dilatação vaginal não ocorreu como é normal e houve necessidade,
com um bisturi, de fazer dois cortes, para abreviar o nascimento da criança.
Não sei onde aquela senhora conseguiu arranjar forças para tudo suportar e
resistir. O parto teve lugar sobre uma espécie de mesa, onde não havia máscaras
ou quaisquer condições higiénicas e sanitárias, onde os fluidos do parto
encharcavam o chão em terra batida e as minhas mãos cobertas de sangue, fezes e
urina. O cheiro era insuportável. A criança nasceu, resistiu, tal como a mãe e
no dia seguinte, foi evacuada para Farim. Enquanto decorria todo este drama, lá
fora, a trovoada, o vento e a chuva, qual sinfonia ou rapsódia, alheavam-se de
tudo aquilo que acabava de ter lugar. Fui ajudado por um enfermeiro do
contingente local, da Companhia de Caçadores 19, habituado a estas situações e
a ferimentos de guerra. Deixei aquele local e por estranho que possa parecer, o
que mais me impressionou foi aquele breve momento de encanto e poesia quando,
no meio de tudo aquilo, a senhora acolheu nos seus braços o seu bebé. Informei
o meu capitão do sucedido. Outros partos sucederam-se, em plena mata, mas,
nestas circunstâncias, não.
Memórias de um combatente enfermeiro.”
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