Caríssimo
Camarada Sousa de Castro
Os
meus melhores cumprimentos.
Cada uma
das narrativas que tenho vindo a publicar relacionadas com as entrevistas dadas
pelos médicos cubanos que estiveram na Guiné, entre 1966 e 1969, têm-nos
permitido aprofundar a investigação, alargando não só os nossos conhecimentos,
como recuperando outras memórias de cada um dos lados do combate.
Estão
neste caso as ocorrências com a morte do Cmdt da Frente Leste Domingos Ramos,
ocorrida em 10 de Novembro de 1966, em Madina do Boé, e que levou Amílcar
Cabral a elaborar uma “Mensagem”, enviada a todos os seus combatentes.
É neste
contexto que nasce mais este pequeno contributo à causa da Historiografia da
Guerra do Ultramar.
Com um
forte abraço de amizade.
Jorge
Araújo.
OUT’2016.
Vd. Poste anterior da série com data de: 24OUT2016- http://cart3494guine.blogspot.pt/2016/10/p286-memorias-de-medicos-cubanos-1966.html
GUINÉ
Jorge Alves Araújo,
ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo,
1972/1974)
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ
- A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO -
1. – INTRODUÇÃO
Creio
não estar muito longe da verdade se afirmar que a maioria dos camaradas,
ex-combatentes, independentemente da época em que isso aconteceu, está a
acompanhar com atenção e interesse a divulgação de algumas das principais experiências
vividas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje
Guiné-Bissau] em “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência,
cujas missões aconteceram nos anos de 1966 a 1969.
Trata-se,
com efeito, de um importante contributo histórico (digo eu!), cujo valor que eventualmente
possamos atribuir à informação transmitida em cada questão, mesmo que seja
relativo, permitir-nos-á reflectir sobre “o outro lado do combate”, para melhor
compreendermos cada uma das nossas diferentes missões.
Na
operacionalização desta possibilidade, abrem-se novos caminhos de análise
individual e colectiva que, quando cruzadas com outros saberes e experiências
pessoais adquiridas em cada contexto, ajudar-nos-ão a estar mais próximo da “verdade
dos factos”, ainda que se aceite que “entre o real e a ficção” se tenha de
superar uma “pista de obstáculos”, com várias “paliçadas” sempre em crescendo,
passe a imagem de âmbito militar.
Os
principais temas em destaque têm sido as dificuldades em sobreviver naquele
tempo e naquele ambiente de guerra-de-guerrilha, aonde o conceito de improviso
sobrepunha-se ao de logística, pois esta não existia, fazendo das pernas o
principal “meio de transporte”, com caminhadas longas e diárias, onde o consumo
de arroz (hidratos de carbono), a caça e a pesca (proteínas magras), garantiam
a subsistência possível à maioria de cada uma das comunidades, e que serviam
para suavizar a fome.
Tabanca do Xime (1972) |
No
contexto estritamente militar, os diferentes relatos confirmaram que a maioria
dos feridos em combate (algumas centenas, se somarmos os números indicados
pelos três médicos) eram tratados em enfermarias de campanha construídas de
colmo, algumas da sua iniciativa e responsabilidade, aonde se realizavam grande
parte das cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite, seguindo para Boké,
o hospital de rectaguarda do PAIGC situado a cerca de trinta quilómetros da
fronteira Leste com a Guiné-Bissau, as situações mais problemáticos, de que um
exemplo concreto, já aqui dissecado, foi o caso do Cmdt Mamadu Indjai em agosto
de 1969 [P281 + P283].
Devido
ao muito trabalho a que estavam sujeitos, às enormes dificuldades logísticas e
ao número de ocorrências contabilizadas no contexto das suas missões, e das
tensões a elas associadas, os médicos cubanos consideraram, como uma forte
probabilidade, não ser possível dai saírem sãos e salvos, ainda que sentissem
grande apoio, respeito e solidariedade.
Para
além do acima exposto, eram também operacionais [armados] da guerrilha,
integrados maioritariamente em bigrupos, sendo informados dos dias dos ataques
onde estavam os portugueses (aquartelamentos, destacamentos, colunas de
abastecimento, tabancas, …) quase sempre com armas pesadas.
Ficavam
geralmente na rectaguarda a um quilómetro de distância, aonde montavam o posto
sanitário com o equipamento de primeiros-socorros, para ser usado em caso de
necessidade de prestação de cuidados de saúde, contando em situações pontuais
com apoio de uma unidade de enfermagem.
Partindo
da crença de que este assunto, tal como muitos outros, mereceria o seu
aprofundamento por via dos muitos comentários recebidos, que agrademos,
reforçada pela sugestão avançada pelo camarada Luís Graça ao referenciar novos
elementos documentais relacionados com a figura de Domingos Ramos e a sua
morte, eis mais um pequeno contributo de reforço ao referido no meu poste
anterior [P286]
2. – A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ
Neste segundo ponto, para enquadrarmos o tema da morte do Cmdt da
Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida a 10 de novembro de 1966, em Madina do
Boé, iremos recuperar algumas das passagens já abordadas anteriormente pelo dr.
Virgílio Camacho Duverger, com destaque para a questão 11 - “participou em acções de guerra?”, mesclando-as com
outros elementos históricos, uns mais fiáveis que outros, mas todos eles a
merecerem a nossa reflexão.
Como foi referido anteriormente, o dr. Virgílio Camacho Duverger
[1934-2003] chega a Conacri em junho de 1966, integrado num contingente de
cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos, em que um
deles é o nosso conhecido dr. Domingo Diaz Delgado.
É colocado no Hospital de Boké, aonde permaneceu dois meses, sendo
depois transferido para a Frente Leste [agosto de 1966] para uma base existente
no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir
uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí
colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar
era atacar o quartel de Madina do Boé [até à exaustão, visando a expulsão das
NT, o que veio a acontecer dois anos e meio depois, em 6 de fevereiro de 1969].
Neste aquartelamento, naquele tempo, estava instalada a CCAÇ 1416
comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro, aí permanecendo entre maio de 1966 e
abril de 1967, sendo nesta última data rendida pela CCAÇ 1790, comandada pelo
Cap Inf José Aparício.
Guiné>
Região do Boé> Madina do Boé> CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina
do Boé, 1966/68) – imagem do aquartelamento [foto de Manuel Coelho, ex-Fur Mil
da CART 1589, P8548, com a devida vénia].
Ao terceiro
mês de estar naquela região [novembro’1966], é-lhe pedido que realize um
reconhecimento ao referido quartel, considerada por si como a missão mais
importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria,
médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para
aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a
base estava a cerca de três quilómetros dali.
Em 10 de
novembro de 1966, uma quarta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um
enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde,
criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona
do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros
socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao
hospital de Boké.
Conta que a
primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por
casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o
comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada
atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu
tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a
caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em
território da Guiné-Conacri, se o hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.
Este
episódio é descrito pelo assessor militar cubano Ulises Estrada [1934-2014],
pois encontrava-se a seu lado, nos seguintes termos: “eu encontrava-me ao lado de
Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me,
coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa
pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os
portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam
com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o
canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas”.
De
notar que Domingos Ramos viria a morrer dois anos depois da cerimónia de
juramento de fidelidade dos guerrilheiros do PAIGC, ocorrida em 16 de novembro
de 1964, nos arredores do Gabu, com a presença de Amílcar Cabral. Este acto de
juramento de fidelidade com que se encerraram os trabalhos da constituição das
primeiras unidades do Exército Popular, e da qual fez parte, tinha como lema
“força, luz e guia do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde”.
À
frente das FARP estavam importantes dirigentes do partido, tais como Domingos
Ramos, Chico Mendes, Luís Correia, Lúcio Lopes e Honório Fonseca. Foram criadas
novas frentes de batalha: no Gabu (local do juramento); no Boé (Madina, Beli,
Cheche); a Leste, e em São Domingos (no Norte). [in: Luís Cabral, «Crónica da
Libertação», 1.ª edição, Julho de 1984, edições «O Jornal», Publicações
Projornal, Lda, Lisboa, p. 230].
Mapa da região do Boé, com a localização do
quartel de Madina, assinalando-se a direcção do hospital de Boké.
3.
– AMÍLCAR
CABRAL E A MORTE DE DOMINGOS RAMOS:
- DO REAL À FICÇÃO
Poucos dias após a morte de Domingos Ramos, Amílcar Cabral
[1924-1973], na qualidade de secretário-geral do PAIGC, elabora um documento de
cinco páginas A4, dactilografado, a que chamou de «MENSAGEM» dirigida a «Todos
os responsáveis e militantes do nosso Partido» e a “Todos os combatentes das
nossas Forças Armadas”, de que se reproduz o título:
Trata-se de um documento político e
ideológico fazendo apelo, no essencial, ao reforço da luta armada em todas as
frentes, utilizando a figura de Domingos Ramos como meio de acção psicológica
tendente à prossecução da libertação nacional.
Eis as duas primeiras páginas:
Acrescenta que “o camarada Domingos
Ramos tombou no seu posto heroicamente, durante um ataque feito a uma caserna
inimiga em 10 de novembro [1966], no qual causámos mais de trinta mortos e
várias dezenas de feridos às tropas colonialistas” (p.3).
A propósito desta afirmação, que é
ficção, eis, no quadro abaixo, o número de baixas das NT verificado no período
entre 1 de Setembro e 8 de Novembro de 1966 em todo o território do CTIG, não
constando nos registos oficiais consultados qualquer morto ou ferido na data do
ataque supra.
De notar, ainda, que até à data
deste ataque, que não teve consequências, a CCAÇ 1416/BCAÇ 1856 registava
quatro baixas, a 1.ª, em 22 de Novembro de 1965, do Alf Milº Adelino da Costa
Duarte, do 3.º Gr Comb [P12320-LG – homenagem de Manuel Luís Lomba], e as três restantes,
curiosamente oito meses despois, em 22 de junho de 1966, a saber: o Sold.
Augusto Reis Ferreira, de Montargil (Ponte de Sôr); o Sold. Carlos Manuel
Santos Martins, da Cova da Piedade (Almada) e o 1.º Cabo Rogério Lopes, de Chão
de Couce (Ansião).
A referência a estas três baixas
tinha já sido lembrada por José Mota Tavares, ex-Alf Milº Capelão da CCS/BCAÇ
1856 [P16049-LG] no qual acrescenta “tenho imensas histórias de (…), Madina do
Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa
para o abrigo…)”].
Sobre o inferno e o martírio de
Madina do Boé, pode-se ver um pouco da história da CCAÇ 1790 em:
Recuperando a mensagem de Amílcar
Cabral, este refere que, quanto à situação de Domingos Ramos, ela era muito
grave e que já não teria salvação. Daí “o camarada Domingos Ramos dirigiu
palavras de encorajamento aos seus companheiros de direcção do Partido, a todos
os combatentes da nossa luta, dando assim mais uma grande prova de amor ao
nosso povo, de dedicação sem limites ao nosso grande Partido e de certeza da
vitória final da nossa luta” (p.3).
Eis as duas páginas seguintes – 3 e 4:
Prossegue com uma deliberação: “tendo em conta
os grandes serviços que o camarada Domingos Ramos prestou ao seu povo, à
construção da nossa Pátria e ao desenvolvimento da nossa luta como militante e
dirigente do nosso Partido, guardamos eternamente a memória do nosso camarada
Domingos Ramos como a de um Herói Nacional. Por isso, a data de nascimento do
nosso camarada Domingos Ramos será considerada uma data nacional, a sua
fotografia será afixada em todos os lugares de trabalho do nosso Partido e
construiremos um monumento à memória do camarada Domingos Ramos logo que a
nossa terra seja independente” (p.4).
Termina
dizendo: “penso que as melhores palavras com que devo acabar esta mensagem são
as que o camarada Domingos Ramos escreveu para mim, nos últimos momentos da sua
vida:
Estas palavras escritas, atribuídas
a Domingos Ramos, são mais uma ficção só possível no contexto da guerra. De
facto, todos os testemunhos dos que dele estiveram mais próximo e o socorreram,
caso do militar Ulises Estrada e do médico Virgílio Duverger, nada referem.
Qualquer um de nós que viveu um
cenário semelhante [e eu sou um deles, mais do que uma vez] não aceita, como
verdade, o que acima é descrito, por muitas e diferentes razões. Desde logo, do
ponto de vista cognitivo. O ferido com a gravidade referenciada cai redondo no
chão e a consciência vai-se [foi-se]. Mas, esquecendo este pormenor muito importante,
vamos a questões práticas.
Aonde estava e de quem era: o bloco
de notas [ou caderno] e a esferográfica? Com tanto sangue espalhado pelo corpo,
a existir papel, este estava limpinho com as mãos ensanguentadas? E a
esferográfica escrevia no papel molhado? E quem guardou o papel escrito e o fez
chegar a Conacri?
Se o Ulises Estrada foi o primeiro
a dar-lhe apoio, recorrendo a outro elemento da guerrilha para o transportar
até junto do posto sanitário [médico], aonde chegou já sem vida, quando e como
era possível escrever uma mensagem tão estruturada e sem gaffes de memória ou
funcionais. Como a terá escrito: de pé, sentado ou deitado? E onde se apoiou
para a escrever: nos joelhos, no chão ou nas costas de alguém? A caligrafia
utilizada: foi em minúsculas ou em maiúsculas?
Enfim… já chega…
Eis algumas razões que me levam a
concluir estarmos perante uma ficção que passou, durante muitos anos, por
verdade…
Obrigado
pela atenção.
Um
forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge
Araújo.
31OUT2016.
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