Total visualizações de páginas, desde Maio 2008 (Fonte: Blogger)

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

P 287 - GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ - A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO - Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [Virgílio Duverger] informou-me que havia falecido.

Caríssimo Camarada Sousa de Castro
Os meus melhores cumprimentos.
Cada uma das narrativas que tenho vindo a publicar relacionadas com as entrevistas dadas pelos médicos cubanos que estiveram na Guiné, entre 1966 e 1969, têm-nos permitido aprofundar a investigação, alargando não só os nossos conhecimentos, como recuperando outras memórias de cada um dos lados do combate.
Estão neste caso as ocorrências com a morte do Cmdt da Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida em 10 de Novembro de 1966, em Madina do Boé, e que levou Amílcar Cabral a elaborar uma “Mensagem”, enviada a todos os seus combatentes.
É neste contexto que nasce mais este pequeno contributo à causa da Historiografia da Guerra do Ultramar.
Com um forte abraço de amizade. 
Jorge Araújo.

OUT’2016.

Vd. Poste anterior da série com data de: 24OUT2016-  http://cart3494guine.blogspot.pt/2016/10/p286-memorias-de-medicos-cubanos-1966.html

GUINÉ
Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER, CART 3494
(Xime-Mansambo, 1972/1974)
GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ
- A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO - 

1.   INTRODUÇÃO
Creio não estar muito longe da verdade se afirmar que a maioria dos camaradas, ex-combatentes, independentemente da época em que isso aconteceu, está a acompanhar com atenção e interesse a divulgação de algumas das principais experiências vividas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, cujas missões aconteceram nos anos de 1966 a 1969.
Trata-se, com efeito, de um importante contributo histórico (digo eu!), cujo valor que eventualmente possamos atribuir à informação transmitida em cada questão, mesmo que seja relativo, permitir-nos-á reflectir sobre “o outro lado do combate”, para melhor compreendermos cada uma das nossas diferentes missões.
Na operacionalização desta possibilidade, abrem-se novos caminhos de análise individual e colectiva que, quando cruzadas com outros saberes e experiências pessoais adquiridas em cada contexto, ajudar-nos-ão a estar mais próximo da “verdade dos factos”, ainda que se aceite que “entre o real e a ficção” se tenha de superar uma “pista de obstáculos”, com várias “paliçadas” sempre em crescendo, passe a imagem de âmbito militar.
Os principais temas em destaque têm sido as dificuldades em sobreviver naquele tempo e naquele ambiente de guerra-de-guerrilha, aonde o conceito de improviso sobrepunha-se ao de logística, pois esta não existia, fazendo das pernas o principal “meio de transporte”, com caminhadas longas e diárias, onde o consumo de arroz (hidratos de carbono), a caça e a pesca (proteínas magras), garantiam a subsistência possível à maioria de cada uma das comunidades, e que serviam para suavizar a fome.
Tabanca do Xime (1972)
No contexto estritamente militar, os diferentes relatos confirmaram que a maioria dos feridos em combate (algumas centenas, se somarmos os números indicados pelos três médicos) eram tratados em enfermarias de campanha construídas de colmo, algumas da sua iniciativa e responsabilidade, aonde se realizavam grande parte das cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite, seguindo para Boké, o hospital de rectaguarda do PAIGC situado a cerca de trinta quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Bissau, as situações mais problemáticos, de que um exemplo concreto, já aqui dissecado, foi o caso do Cmdt Mamadu Indjai em agosto de 1969 [P281 + P283].
Devido ao muito trabalho a que estavam sujeitos, às enormes dificuldades logísticas e ao número de ocorrências contabilizadas no contexto das suas missões, e das tensões a elas associadas, os médicos cubanos consideraram, como uma forte probabilidade, não ser possível dai saírem sãos e salvos, ainda que sentissem grande apoio, respeito e solidariedade.
Para além do acima exposto, eram também operacionais [armados] da guerrilha, integrados maioritariamente em bigrupos, sendo informados dos dias dos ataques onde estavam os portugueses (aquartelamentos, destacamentos, colunas de abastecimento, tabancas, …) quase sempre com armas pesadas.
Ficavam geralmente na rectaguarda a um quilómetro de distância, aonde montavam o posto sanitário com o equipamento de primeiros-socorros, para ser usado em caso de necessidade de prestação de cuidados de saúde, contando em situações pontuais com apoio de uma unidade de enfermagem.
Partindo da crença de que este assunto, tal como muitos outros, mereceria o seu aprofundamento por via dos muitos comentários recebidos, que agrademos, reforçada pela sugestão avançada pelo camarada Luís Graça ao referenciar novos elementos documentais relacionados com a figura de Domingos Ramos e a sua morte, eis mais um pequeno contributo de reforço ao referido no meu poste anterior [P286]
2.   – A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ
Neste segundo ponto, para enquadrarmos o tema da morte do Cmdt da Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, iremos recuperar algumas das passagens já abordadas anteriormente pelo dr. Virgílio Camacho Duverger, com destaque para a questão 11 - “participou em acções de guerra?”, mesclando-as com outros elementos históricos, uns mais fiáveis que outros, mas todos eles a merecerem a nossa reflexão.
Como foi referido anteriormente, o dr. Virgílio Camacho Duverger [1934-2003] chega a Conacri em junho de 1966, integrado num contingente de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos, em que um deles é o nosso conhecido dr. Domingo Diaz Delgado.
É colocado no Hospital de Boké, aonde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé [até à exaustão, visando a expulsão das NT, o que veio a acontecer dois anos e meio depois, em 6 de fevereiro de 1969].
Neste aquartelamento, naquele tempo, estava instalada a CCAÇ 1416 comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro, aí permanecendo entre maio de 1966 e abril de 1967, sendo nesta última data rendida pela CCAÇ 1790, comandada pelo Cap Inf José Aparício.  
Guiné> Região do Boé> Madina do Boé> CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) – imagem do aquartelamento [foto de Manuel Coelho, ex-Fur Mil da CART 1589, P8548, com a devida vénia].
Ao terceiro mês de estar naquela região [novembro’1966], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido quartel, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.
Em 10 de novembro de 1966, uma quarta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké.
Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.
Este episódio é descrito pelo assessor militar cubano Ulises Estrada [1934-2014], pois encontrava-se a seu lado, nos seguintes termos: eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas”.
Canhão B-10 em acção nas matas da Guiné, retirada da Conferência Tricontinental.
Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [Virgílio Duverger] informou-me que havia falecido.
Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”.

[tradução do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm]
De notar que Domingos Ramos viria a morrer dois anos depois da cerimónia de juramento de fidelidade dos guerrilheiros do PAIGC, ocorrida em 16 de novembro de 1964, nos arredores do Gabu, com a presença de Amílcar Cabral. Este acto de juramento de fidelidade com que se encerraram os trabalhos da constituição das primeiras unidades do Exército Popular, e da qual fez parte, tinha como lema “força, luz e guia do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde”.
À frente das FARP estavam importantes dirigentes do partido, tais como Domingos Ramos, Chico Mendes, Luís Correia, Lúcio Lopes e Honório Fonseca. Foram criadas novas frentes de batalha: no Gabu (local do juramento); no Boé (Madina, Beli, Cheche); a Leste, e em São Domingos (no Norte). [in: Luís Cabral, «Crónica da Libertação», 1.ª edição, Julho de 1984, edições «O Jornal», Publicações Projornal, Lda, Lisboa, p. 230].
Mapa da região do Boé, com a localização do quartel de Madina, assinalando-se a direcção do hospital de Boké.

3.   – AMÍLCAR CABRAL E A MORTE DE DOMINGOS RAMOS:
 - DO REAL À FICÇÃO
Poucos dias após a morte de Domingos Ramos, Amílcar Cabral [1924-1973], na qualidade de secretário-geral do PAIGC, elabora um documento de cinco páginas A4, dactilografado, a que chamou de «MENSAGEM» dirigida a «Todos os responsáveis e militantes do nosso Partido» e a “Todos os combatentes das nossas Forças Armadas”, de que se reproduz o título:


Trata-se de um documento político e ideológico fazendo apelo, no essencial, ao reforço da luta armada em todas as frentes, utilizando a figura de Domingos Ramos como meio de acção psicológica tendente à prossecução da libertação nacional.
Eis as duas primeiras páginas:


Quanto ao sucedido, lamenta [naturalmente] mais uma perda na luta armada de libertação nacional, referindo-se: - “à morte do nosso grande camarada Domingos Ramos (João Cá) [imagem ao lado com Amílcar Cabral], membro do Bureau Político do nosso Partido, companheiro exemplar e querido de todos os camaradas, militantes de vanguarda da nossa luta de libertação”.
Acrescenta que “o camarada Domingos Ramos tombou no seu posto heroicamente, durante um ataque feito a uma caserna inimiga em 10 de novembro [1966], no qual causámos mais de trinta mortos e várias dezenas de feridos às tropas colonialistas” (p.3).
A propósito desta afirmação, que é ficção, eis, no quadro abaixo, o número de baixas das NT verificado no período entre 1 de Setembro e 8 de Novembro de 1966 em todo o território do CTIG, não constando nos registos oficiais consultados qualquer morto ou ferido na data do ataque supra.
De notar, ainda, que até à data deste ataque, que não teve consequências, a CCAÇ 1416/BCAÇ 1856 registava quatro baixas, a 1.ª, em 22 de Novembro de 1965, do Alf Milº Adelino da Costa Duarte, do 3.º Gr Comb [P12320-LG – homenagem de Manuel Luís Lomba], e as três restantes, curiosamente oito meses despois, em 22 de junho de 1966, a saber: o Sold. Augusto Reis Ferreira, de Montargil (Ponte de Sôr); o Sold. Carlos Manuel Santos Martins, da Cova da Piedade (Almada) e o 1.º Cabo Rogério Lopes, de Chão de Couce (Ansião).
A referência a estas três baixas tinha já sido lembrada por José Mota Tavares, ex-Alf Milº Capelão da CCS/BCAÇ 1856 [P16049-LG] no qual acrescenta “tenho imensas histórias de (…), Madina do Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa para o abrigo…)”].
Sobre o inferno e o martírio de Madina do Boé, pode-se ver um pouco da história da CCAÇ 1790 em:
Recuperando a mensagem de Amílcar Cabral, este refere que, quanto à situação de Domingos Ramos, ela era muito grave e que já não teria salvação. Daí “o camarada Domingos Ramos dirigiu palavras de encorajamento aos seus companheiros de direcção do Partido, a todos os combatentes da nossa luta, dando assim mais uma grande prova de amor ao nosso povo, de dedicação sem limites ao nosso grande Partido e de certeza da vitória final da nossa luta” (p.3).
Eis as duas páginas seguintes – 3 e 4:

Prossegue com uma deliberação: “tendo em conta os grandes serviços que o camarada Domingos Ramos prestou ao seu povo, à construção da nossa Pátria e ao desenvolvimento da nossa luta como militante e dirigente do nosso Partido, guardamos eternamente a memória do nosso camarada Domingos Ramos como a de um Herói Nacional. Por isso, a data de nascimento do nosso camarada Domingos Ramos será considerada uma data nacional, a sua fotografia será afixada em todos os lugares de trabalho do nosso Partido e construiremos um monumento à memória do camarada Domingos Ramos logo que a nossa terra seja independente” (p.4).
Termina dizendo: “penso que as melhores palavras com que devo acabar esta mensagem são as que o camarada Domingos Ramos escreveu para mim, nos últimos momentos da sua vida:   

Estas palavras escritas, atribuídas a Domingos Ramos, são mais uma ficção só possível no contexto da guerra. De facto, todos os testemunhos dos que dele estiveram mais próximo e o socorreram, caso do militar Ulises Estrada e do médico Virgílio Duverger, nada referem.
Qualquer um de nós que viveu um cenário semelhante [e eu sou um deles, mais do que uma vez] não aceita, como verdade, o que acima é descrito, por muitas e diferentes razões. Desde logo, do ponto de vista cognitivo. O ferido com a gravidade referenciada cai redondo no chão e a consciência vai-se [foi-se]. Mas, esquecendo este pormenor muito importante, vamos a questões práticas.
Aonde estava e de quem era: o bloco de notas [ou caderno] e a esferográfica? Com tanto sangue espalhado pelo corpo, a existir papel, este estava limpinho com as mãos ensanguentadas? E a esferográfica escrevia no papel molhado? E quem guardou o papel escrito e o fez chegar a Conacri?
Se o Ulises Estrada foi o primeiro a dar-lhe apoio, recorrendo a outro elemento da guerrilha para o transportar até junto do posto sanitário [médico], aonde chegou já sem vida, quando e como era possível escrever uma mensagem tão estruturada e sem gaffes de memória ou funcionais. Como a terá escrito: de pé, sentado ou deitado? E onde se apoiou para a escrever: nos joelhos, no chão ou nas costas de alguém? A caligrafia utilizada: foi em minúsculas ou em maiúsculas?
Enfim… já chega…
Eis algumas razões que me levam a concluir estarmos perante uma ficção que passou, durante muitos anos, por verdade…

 
 
 
 
 

Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
31OUT2016.

Sem comentários: