Mensagem com data de 17 de Novembro de 2018 de Jorge Alves Araújo, ex. Fur. Milº. OP ESP./Ranger, CART 3494 - Xime e Mansambo, 1972/74
Caríssimo Camarada Sousa de Castro.
Os meus melhores cumprimentos.
Na qualidade de ex-combatente, continuo a aprofundar os
diferentes fenómenos que marcaram o conflito armado no CTIG (1963-1974), por
via do estudo e análise historiográfica, partindo da literatura consultada.
No caso presente, partilho convosco o que consegui apurar
sobre o tema "as deserções no PAIGC no sector de Tite ao tempo do BART
2924 (1971-1972) e quais as consequências que tiveram para cada uma das forças
em presença.
Considerando a dimensão da narrativa, decidi dividi-la em
duas partes, sendo esta, naturalmente, a primeira.
Com um forte abraço de amizade,
Jorge Araújo.
Nov/2018.
AS DESERÇÕES NO PAIGC NO SECTOR DE TITE AO TEMPO DO BART
2924 (1971-1972) E SUAS CONSEQUÊNCIAS
PARTE I
1. -
INTRODUÇÃO
Para início da temática que o título
identifica, socorri-me do meu pensamento que lhe deu origem, repetindo “que o
fenómeno das deserções em contexto de guerra é considerado normal, ainda que
pontual e de percentagem reduzida”.
Confesso que não vi nenhum desertor no Xime.
Provavelmente, porque aí não seria o melhor local para o fazer, ainda que num
dia do mês de Maio’72, já fez quarenta e seis anos, tenha “apanhado” cinco
guerrilheiros à mão no Cais, oriundos da Ponta do Inglês (mata do Fiofioli), que
foram transportados até ao aquartelamento da CART 3494… história que contarei
proximamente.
O que importa agora é dar-vos conta do que
consegui apurar sobre este tema das “deserções” no PAIGC. Todos os casos
sinalizados foram obtidos nas fontes bibliográficas consultadas, de ambos os
lados do combate, com recurso à metodologia de “análise de conteúdo”, já que,
como referi anteriormente, não conheci nenhum caso concreto.
E tudo começou quando me recordei das “Notas
de Leitura” do camarada Beja Santos [P15058-LG] relacionadas com o livro «O
Guardião», da autoria de Fernando dos Anjos Alves Antunes, ex-furriel de Inf/Op
do BART 2924, sedeado em Tite (1970/1972), Edição de Setembro de 2011.
Aí chegado, logo o caminho da investigação se
abriu a outra obra: «Memórias de África, Angola e Guiné», da Âncora Editora e
do Programa Fim do Império (2016). É seu autor José Fernando Valles de
Figueiredo Valente que, por coincidência, foi 2.º Cmdt do BART 2924, depois
Cmdt Interino e em Janeiro de 1972 passou a ser o seu 1.º Cmdt, na sequência de
ter sido promovido a Tenente-Coronel. Hoje é General aposentado.
Para além destas duas obras, recorremos uma
vez mais aos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973) existentes na Casa Comum –
Fundação Mário Soares, como mais um elemento de reforço temático e de
contraditório na elaboração deste trabalho.
Para outras eventuais consultas pessoais, aqui
vos deixo as duas capas dos livros supra.
2. - AS
DESERÇÕES NO PAIGC NO SECTOR DE TITE, REGIÃO DE QUINARA, AO TEMPO DO BART 2924
(JAN’71-AGO’72) E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Procurando
encontrar exemplos que pudessem ilustrar o nosso propósito de partida, independentemente
da época e do sector/região do CTIG, relacionados com episódios de deserções
nas fileiras do PIAGC e suas consequências, a investigação, como aliás é
explicado na introdução, levou-nos ao caso paradigmático e histórico do
Batalhão de Artilharia 2924 [BART 2924], sedeado em Tite, região de Quinara, a
sul do Rio Geba, no período compreendido entre Janeiro de 1971 e Agosto de
1972.
Para
o efeito de cumprir as missões que lhe foram confiadas pelo Governador Militar
e Comandante-Chefe, General António de Spínola (1910-1996), em função das
características da sua Zona Operacional – Sector de Tite – onde a principal
referência histórica estava ligada a 23 de Janeiro de 1963, data considerada como
início do conflito armado, e daí muito próximo de completar oito anos de
existência, o Comando do BART 2924 dispunha de um contingente de oito centenas
de efectivos, pertencentes ao seguinte dispositivo das NT:
● Em TITE => Comando do BART 2924 com
o apoio da Companhia de Comando e Serviços (CCS); Companhia de Cavalaria 2765;
Pelotão de Morteiros 2114; Pelotão AM Daimler 2204; 6.º Pelotão de Artilharia
(105mm – Obuses) e Pelotão de Milícias 220.
● Em NOVA SINTRA => Companhia de Artilharia
2771 e Esquadra do Pelotão de Morteiros 2114.
● Em FULACUNDA => Companhia de Artilharia
2772 e Pelotão de Milícias 221.
● Em JABADÁ => Companhia de Artilharia
2773 e Pelotão de Milícias 219.
● Em ENXUDÉ (Porto) => Pelotão de Reconhecimento
2204 e Esquadra do Pelotão de Morteiros 2114.
2.1 -
ÁREA E LOCAIS DA ZONA OPERACIONAL DO SECTOR DE TITE
O
mapa que abaixo se apresenta indica a azul os locais onde estavam instaladas
(aquarteladas) as diferentes Unidades Orgânicas das NT acima referidas, bem
como os aglomerados populacionais correspondentes à zona operacional [ZO] sob
sua administração.
A
vermelho referem-se os nomes de diferentes Tabancas do Sector, cujas populações
acabaram por ficar sob o controlo do PAIGC, ainda que algumas delas tenham
abandonado esses espaços refugiando-se na mata (no mato). A sua indicação tem
por objectivo facilitar a localização dos casos abordados ao longo desta
narrativa.
2.2 -
MISSÕES/ACÇÕES DAS NT NO SECTOR DE TITE
Com
o Comando do BART 2924 e a sua Companhia de Comando e Serviços (CCS) instalados
em Tite, às subunidades de quadrícula do Batalhão foram atribuídas diferentes
missões/acções consoante as características de cada um dos locais onde iriam
estar fixadas. Assim a:
● CART 2771 (em Nova
Sintra); tinha por missão controlar a sua zona de acção, na sua própria defesa
e na colaboração da segurança afastada de Tite e, por inerência, a de Bolama.
Com a construção do novo reordenamento da Tabanca de Bissássema, foi também
missão desta Companhia colaborar na sua segurança afastada.
● CART 2772 (em
Fulacunda); tinha por missão particular desenvolver a sua actividade de contra
penetração sobre o “Corredor de Guebambol”. Foi a Companhia com maior área de
acção militar e aquela que estava mais distante da sede do Batalhão.
● CART 2773 (em
Jabadá); tinha por missão especial, a captação e recuperação da população,
através da Acção Psicológica (“APSICO”), da península de Jabadá.
● CCAV 2765 (em Tite, e
depois em Bissássema); tinha por missão, após concluído o processo de
preparação do terreno e montagem de tendas de campanha em Bissássema, a defesa
da construção desse reordenamento bem como da sua respectiva segurança com o
apoio das forças especializadas sedeadas em Tite.
2.3 - INÍCIO DO REORDENAMENTO
DA TABANCA DE BISSÁSSEMA E A CHEGADA A TITE DA 1.ª COMPANHIA DE COMANDOS
AFRICANOS DO CAPITÃO JOÃO BACAR DJALÓ
Chegado
a Tite em Novembro de 1970, para substituir o BCAV 2867, o BART 2924 inicia no
primeiro dia de 1971 o cumprimento da Directiva Operacional recebida das mãos
do Comandante-Chefe durante o “IAO”, em Bolama. Nessa Directiva, para além da
actividade operacional global, tinha-lhe sido atribuída a responsabilidade por
implantar o reordenamento da nova Tabanca de Bissássema, fazendo regressar do
mato as populações dispersas na área, maioritariamente de etnia balanta, a
construção da estrada Tite-Bissássema e a melhoria do prolongamento viário até
ao Enxudé.
Cais de Enxudé (1971)
ao tempo do PelRec 2204 / PelMort 2114 (Foto de José Sobral, 1.º Cabo Esc. do
BART 2924; in: http://ultramar.terraweb.biz/CTIG/Imagens_CTIG_
JoseSobra_ImagensGuine.htm; com a devida vénia).
É
nesse dia 1 de Janeiro de 1971, sob a liderança do 2.º Cmdt do BART 2924, Major
José de Figueiredo Valente [hoje General aposentado, autor do livro «Memórias
de África, Angola e Guiné», como acima se refere] que tem lugar uma operação de
reconhecimento do local da nova Tabanca de Bissássema, em que participam forças
da CCAV 2765 e um GrComb da CART 2771.
Para
a realização das diferentes obras, a sede do Batalhão é reforçada com um
Destacamento do BENG 447, devidamente apetrechado com as respectivas máquinas.
Quinze dias depois dá-se início aos trabalhos.
Decorrido
um mês, em 15 de Fevereiro’71, devido às condições particulares das várias
missões do BART 2924, que aliavam a actividade operacional com acções em
proveito das populações, chega a Tite a 1.ª Companhia de Comandos Africanos
[1.ª CCA], do Cmdt Capitão João Bacar Djaló para ali realizar o seu treino
operacional. Durante as suas missões/acções a 1.ª CCA passou a integrar-se no
conceito geral de actuação do Batalhão, em que deveria evitar que as populações
fossem molestadas, procurando, de igual modo, conquistar a sua confiança.
Tite; Fev’71 – A 1.ª
Companhia de Comandos Africana [1.ª CCA], do capitão João Bacar Djaló, em
formatura na parada do quartel de Tite. (Foto de Fernando Antunes, ex-furriel
do BART 2924, in: «O Guardião», com a devida vénia).
Em
16 de Fevereiro’71, ou seja, no dia seguinte à sua chegada, a 1.ª CCA realiza
uma operação com 4 GrComb, surpreendendo o Bigrupo do Cmdt Taguemé Na Uaiê,
nascido em 1943, em Ganjauará [hdl.handle.net/11002/fms_dc_40467],
fazendo dois mortos ao IN, entre eles o Comissário Político Imbali. Aprisionam
uma “Kalash” com três carregadores, dois “RPG2” e destroem quatro acampamentos.
Na
semana seguinte, em 22 e 23 de Fevereiro’71, a 1.ª CCA e 3 GrComb da CART 2771,
realizam nova operação e, do encontro com o PAIGC, resultam duas baixas para
este, sendo um morto e um ferido, o Cmdt do Bigrupo Tamba Bazzoka, também
conhecido por Pascoal Có.
Entretanto,
em 12 e 13 de Março’71 realiza-se a Operação «Desejada Oportunidade” com a
participação de várias forças, envolvendo as subunidades de Tite, Nova Sintra,
Jabadá, Fulacunda e Bissau, com os seguintes efectivos: 4 GrComb da 1.ª CCA, 2
GrComb da 27.ª CCmds, 1 DFE 21, 1 GrComb da CART 2771 e 3 GrComb da CART 2773,
tendo-se verificando um único contacto com o IN, e a captura de Lassana Nanqui,
em Bária.
2.4 - A
MORTE DO CAPITÃO COMANDO JOÃO BACAR DJALÓ (1929-1971) EM JUFÁ
Devido
a informações que foram sendo obtidas pelas NT, soube-se que o PAIGC estava a
pressionar as populações não colaborantes, na região de Jufá, situada a sete
quilómetros da sede do Batalhão. Em função daquela situação, em 15 de Abril’71,
exactamente dois meses após a chegada a Tite da 1.ª CCA, o Major José
Figueiredo Valente, à data comandante interino do BART 2924, decide lançar duas
acções simultâneas na direcção da população de Jufá, com 2 GrComb da CART 2773,
vindos de Jabadá, a Norte, e 3 GrComb da 1.ª CCA, a partir de Tite.
As
forças da 1.ª CCA, comandadas pelo próprio capitão João Bacar Djaló e pelo
alferes Domingos, deviam atravessar o Rio Louvado por um pontão existente e
contactar posteriormente a população de Jufá. O desenrolar das duas acções
“Nilo” teve desfechos diferentes. Enquanto as forças da CART 2773, de Jabadá,
estabeleceram contacto com um grupo IN, sem consequências, a acção dos GrComb
da 1.ª CCA, por outro lado, teve um desenvolvimento mais intenso e mais
dramático.
Ao
chegar à Tabanca, e ao falar com a população, os elementos da 1.ª CCA notaram
que existia uma certa “tensão no ar” e algum nervosismo. Enquanto o capitão
João Bacar falava com o Homem Grande da Tabanca e alguns elementos da população,
os seus subordinados começaram a dispersar pela povoação. De súbito, um grupo
IN, superior a setenta guerrilheiros, vindo de S. José (Crato), que esperava
emboscado, uns no exterior e outros escondidos em casas, ao abrigo da
população, abriram fogo atingindo com gravidade o alferes Domingos.
Ao
grito de “comandos ao ataque”, pronunciado pelo capitão João Bacar, as “kalash”
não pararam de vomitarem fogo em todas as direcções, transformando aquele palco
da guerra num autêntico inferno. Ao deslocar-se para socorrer o seu camarada Domingos,
o capitão João Bacar Djaló (1929-1971) é atingido por uma granada de “RPG2” que
rebenta junto à sua barriga e que provoca o rebentamento das granadas de mão
que habitualmente trazia à sua cintura, causando-lhe morte imediata. Tinha
quarenta e um anos [n.1929.10.02, em Cacine]. A batalha termina com as forças
IN em retirada, levando os vários feridos e deixando para trás quatro mortos
seus e vários na população.
O
seu corpo, bem como os dos cinco camaradas feridos no combate, onde estava o
alferes Domingos, foram recolhidos em Jufá e helitransportados para Bissau.
Os
restantes elementos da 1.ª CCA ficam cheios de “raiva”, por terem sido traídos
e assistirem à trágica morte do seu Cmdt. Regressam a Tite sem o seu líder, mas
com vários colaboradores do PAIGC de Jufá. Durante o caminho perdem todos os
prisioneiros, devido aos seus ferimentos, excepto o prisioneiro Imbunde Cumba,
de etnia balanta, que chega ferido.
Esta
notícia é enviada uma semana depois por Nino Vieira a Amílcar Cabral, cujo
conteúdo abaixo se reproduz.
2.5 - AS PRIMEIRAS DESERÇÕES NO PAIGC
AO TEMPO DO BART 2924 (1971-1972)
Na
sequência da intensa e bem-sucedida Acção Psicológica (“APSICO”) do BART 2924,
durante o mês de Maio’71 apresentam-se seis elementos IN, entre eles, Tomba
Lona, Filipe Iala, Fiere Embaná e Cunhete Cabi.
Este
e os restantes pontos serão abordados na segunda parte desta narrativa.
Continua…
Com
um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge
Araújo.
17NOV2018.
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