O nacionalismo e a luta anti-colonial na Guiné e Cabo Verde estiveram profundamente ligados à figura carismática de Amílcar Cabral (12). Este dirigente africano dedicou a sua vida à libertação do seu povo e à luta contra o colonialismo português.
As Forças Armadas Portuguesas, à medida que o conflito se intensificava, foram também, e de uma forma crescente, utilizando um maior número de africanos nas suas fileiras, aproveitando o seu conhecimento do terreno, dos hábitos, das línguas e até da adaptação ao meio. A criação e o emprego de militares africanos na Guiné, nomeadamente comandos africanos, começou por ser um processo, no início da guerra, que apenas integrava um pequeno núcleo de militares africanos, de milícias e de tropas de segunda linha, que já colaboravam com as unidades metropolitanas. Estes militares iriam ser, na fase pós-independência, uma das fontes de conflito entre guineenses.
Conflitos no seio do PAIGC - Congresso de Cassacá
Em 1961, Amílcar Cabral tentou conciliar as várias formações nacionalistas existentes na Guiné. Deste modo, tentou unir o PAIGC com a União dos Povos da Guiné (UPG) liderada por Henry Labery e o Movimento de Libertação da Guiné (MLG) de François Mendy Kankoila. No entanto, estes três movimentos entregaram-se a renhidas e duras batalhas verbais, principalmente sobre o tema das relações entre a Guiné e Cabo Verde. Por um lado, havia a existência de pequenos grupos que não queriam nada com Cabo Verde; por outro, o PAIGC insistia na tónica da unidade dos dois povos e territórios.
Em Fevereiro de 1964, o PAIGC realizou o seu I Congresso em Cassacá, na zona de Cacine. O objectivo deste congresso foi o de clarificar posições e unificar o Partido. Neste Congresso foi criado o Conselho Supremo da Guerra, órgão responsável pela condução da guerra. Foi também nesta altura que surgiram as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP).
O Congresso de Cassacá foi ainda marcado pelo conflito entre os que concebiam o Partido como um projecto sério, um instrumento de libertação do povo guineense, e os que estavam predispostos a servir-se do partido para a realização de desejos pessoais.
Após importantes vitórias militares, o PAIGC sofreu um duro golpe a 20 de Janeiro de 1973 com o assassinato de Amílcar Cabral, tendo surgido várias versões para tentar explicar este assassinato (13). Cabral foi morto em Conacry por Inocêncio Kani, um comandante naval guineense do PAIGC. Rivalidades entre guineenses e caboverdianos, inteligentemente aproveitadas pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), podem ter estado na origem do assassinato. No entanto, continua a ser um mistério sobre quem o mandou matar, quem, nos bastidores, preparou e organizou o crime e tentou um golpe de estado no partido. Terá sido uma facção guineense e negra, que não aceitava a liderança dos caboverdianos e mestiços? Qual o papel do Presidente da República da Guiné, Sékou Touré, que não lidava bem com a crescente projecção internacional de Cabral e a sua ligação à cultura portuguesa? E da PIDE, que se infiltrara na direcção do PAIGC e que tudo fizera para eliminar o principal inimigo do regime? E, qual o papel dos militares portugueses, que anos antes tinham invadido Conakry? Tudo perguntas ainda sem respostas, que não cabem no âmbito deste estudo, a não ser pelo facto de mais uma vez porem em evidência os constantes conflitos em que o PAIGC se foi envolvendo.
Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal, através da Lei n.º 7/74 (14), reconheceu o PAIGC como único e legítimo representante do povo da Guiné-Bissau e, nessa qualidade, iniciou negociações com vista à celebração de um acordo que formalizasse a independência do território. As negociações foram rápidas e a 26 de Agosto de 1974 foi assinado o Acordo de Argel. A transformação do PAIGC de movimento de libertação em partido dirigente da Guiné-Bissau trouxe alguns problemas de adaptação, agravados pelo conflito latente entre caboverdianos e guineenses e pela existência de uma camada da população, nomeadamente em Bissau e Bafatá, que não apoiava o Partido. O III Congresso do PAIGC, realizado em 1977, não foi capaz de resolver estes problemas.
Por ter sido o único movimento que assumiu de uma forma estruturada a luta pela libertação nacional, não permitindo espaço para a actuação de outros movimentos independentistas, os quadros do PAIGC chegaram à independência política constituindo-se como a única elite do poder competente para assegurar as tarefas de reconstrução do país. O poder e as posições principais foram arrebatadas por pessoas oriundas das camadas mais baixas (camponeses e assalariados), que na maior parte dos casos tiveram menos possibilidades para se educar durante o período colonial (15).
Palácio do governador em Bissau, 1972 |
A independência foi recebida com um entusiasmo, que se generalizou, e que por vezes se tornou inconsciente aos problemas inerentes, com esperanças e incertezas quanto ao futuro da Guiné-Bissau. A luta continuava, embora agora o inimigo já não fosse o colonialismo português; estava agora dentro da sociedade guineense, nas fraquezas das próprias instituições que, desde o princípio, não correspondiam aos objectivos a atingir nesta nova fase de luta para a construção de uma nova nação, com muitas etnias diferentes umas das outras e em que se distinguiam os guerrilheiros do PAIGC, os antigos combatentes do lado português e a população testemunha sacrificada de onze anos de conflito armado (16).
O golpe de estado de 14 de Novembro de 1980
Em 1980, a situação económica na Guiné-Bissau era muito má. A diferença entre uma classe dirigente vivendo num luxo ostensivo e a população desprovida dos elementares bens de primeira necessidade era inaceitável num país que tinha efectuado inúmeros sacrifícios na luta de libertação nacional. O Estado tinha revelado uma total incapacidade de resolver os principais problemas da população, e as tarefas políticas tornaram-se cada vez mais complexas.
Apesar da rejeição de muitos dos “representantes do povo”, a Assembleia Nacional Popular, em sessão extraordinária de 12 de Novembro de 1980, aprovou o texto da nova Constituição. Este facto, adicionado ao depauperamento do país e também ao crescente mal-estar social, traduzido em desconfianças mútuas e ódios, resultantes das perseguições dos órgãos da segurança do Estado, seriam a base da crescente instabilidade política.
Neste ambiente de permanentes conflitos internos no PAIGC, a Guiné-Bissau, seis anos após a independência, conheceu um golpe de Estado a 14 de Novembro de 1980, liderado pelo então Comissário Principal, equiparado a Primeiro-Ministro, o Comandante João Bernardo “Nino” Vieira.
As razões do descontentamento de Nino Vieira relacionavam-se com a introdução de patentes militares no seio das Forças Armadas, em 1979. Os antigos combatentes sentiam uma profunda injustiça perante o sistema de cotas (17), que permitia promover jovens caboverdianos recém-chegados de Portugal ou de Cabo Verde e sem nenhuma legitimidade militar a comandarem os verdadeiros combatentes da liberdade da pátria. Quanto a Nino Vieira, considerou não ter sido promovido de forma justa, tendo em conta o seu passado na luta de libertação (18), acabando por reagir de uma forma que os juristas qualificam como de legítima defesa. O “Movimento Reajustador” de 14 de Novembro de 1980, como ficou conhecido, soube explorar a seu benefício a velha e profunda clivagem entre as elites negras e mestiças na Guiné. O ressentimento face aos caboverdianos nasce com a história e o modelo de dominação colonial. Por causa da origem sócio-cultural e do acesso à educação de que puderam beneficiar os caboverdianos, estes colaboraram activamente com o poder colonial, tendo-se revelado como preciosos auxiliares e intermediários entre os autóctones e as autoridades coloniais na gestão da administração e na supervisão dos trabalhos forçados. Mesmo levando em conta que os mestiços forneceram aos movimentos nacionalistas os seus melhores quadros, este passado incómodo ressurgiu logo que a elite mestiça caboverdiana começou a ganhar posições depois da conquista da independência.
A Assembleia Nacional foi dissolvida e Nino Vieira assumiu a posição de Presidente do Conselho da Revolução, afastando do Partido a grande maioria dos dirigentes caboverdianos. A ala caboverdiana do PAIGC reagiu e declararou a ruptura e cisão do partido. Na sequência, foi constituído em Cabo Verde o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV).
Na sequência do Golpe de Estado de 1980, o sonho de união entre Cabo Verde e a Guiné- Bissau desapareceu de vez. O Golpe provocou o corte de relações entre os dois países.
Conflitos internos no PAIGC
Em 1985, dá-se um novo caso de conflito interno no seio do PAIGC e do Governo, com a detenção de 60 pessoas, acusadas de conspiração. Em Julho de 1986, seis dos detidos, todos militares, entre os quais o ex-Vice-Presidente do Conselho de Estado, Coronel Paulo Correia (19), são mortos por fuzilamento. Os restantes detidos foram condenados a penas de prisão que variaram de 1 a 51 anos, tendo seis deles falecido na prisão.
A abertura política do regime
Em Janeiro de 1991, durante o II Congresso Extraordinário do PAIGC, o Presidente Nino Vieira anunciou o início da democratização do país, tendo para o efeito sido alterada a Constituição, de modo a permitir o pluralismo político, a liberdade de expressão, associação, reunião e de imprensa (20).
Entre 1992 e 1993, assistiu-se ao nascimento e proliferação de várias formações partidárias, tendo concorrido 13 partidos legalizados às eleições legislativas de 1994.
Destes, apenas dois, a Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING) e a Resistência da Guiné-Bissau – Movimento Bá-fatá (RGB-MB), não eram resultado de cisões ou dissidências do PAIGC ou criados por antigos militantes ou dirigentes.
É um facto que a constituição de várias formações políticas na Guiné-Bissau desde 1991, foi também caracterizada por conflitos de interesses e várias dissidências, reforçando o argumento da lógica do conflito na história recente deste país.
O conflito Político-Militar (1998-1999)
Em Maio de 1997, a Guiné-Bissau, numa tentativa de aprofundar a cooperação monetária ao nível sub-regional, tornou-se o oitavo membro da União Económica e Monetária da África Ocidental (UEMOA) (21), tendo aderido ao franco CFA (Comunidade Financeira Africana) (22). O que se pensava ser uma medida que permitiria uma maior estabilidade monetária e a criação de um ambiente mais atractivo para o investimento externo, veio a revelar-se uma medida desastrosa ao nível económico e social, porque não foi acompanhada de medidas macro-económicas sólidas capazes de sustentar o desenvolvimento, levando assim a um aumento da pressão externa, nomeadamente dos
Estados francófonos vizinhos, principalmente do Senegal, e a uma consequente descapitalização do país.
Podemos afirmar que a inquietação generalizada e o sentimento de o país estar num impasse político contribuíram para acelerar a eclosão da revolta militar. A configuração das forças políticas e militares anti-Nino Vieira logo no início do levantamento de 7 de Junho de 1998, demonstram que o eclodir da guerra, menos de um mês depois do fim do VI Congresso do PAIGC, foi uma sequência natural da guerra de palavras travada nesta contenda política para uma guerra violenta provocada pelo impasse que constitui o seu desfecho político.
Por outro lado, a constatação de que existe uma ligação íntima entre a crise política do PAIGC e a crise no seio das Forças Armadas, levava a crer que os problemas delicados que estes últimos enfrentavam, fossem discutidos e resolvidos pela classe política no poder. O facto de não terem sido abordados os problemas dos militares durante o VI Congresso do PAIGC, só fez aumentar o clima de inquietação dentro desta instituição, sendo este um dos factores preponderantes que levaram à rebelião militar. O conflito que assolou o país em 1998 deve ser analisado numa perspectiva que abarque a sua dimensão externa. Um dos aspectos desta dimensão externa prende-se com a rivalidade entre Portugal e França no que respeita à Guiné-Bissau. Esta rivalidade tem origem muito remota.
Políticas de Ajuda ao Desenvolvimento e principais actores internacionais
A forma diferente como Portugal e a França têm encarado a política interna e externa guineense tem estado ligada aos interesses económicos, culturais, políticos e geográficos que o país representa para cada um deles.
Se, com certas reservas, se pode falar de interesses económicos, já o mesmo não se pode dizer em relação aos interesses culturais e políticos, tendo em consideração os seus contornos geográficos. Deste modo, pode dizer-se que Portugal e França têm sido “concorrentes” no que respeita às políticas de ajuda ao desenvolvimento que têm sido implementadas na Guiné-Bissau, sobretudo a partir da segunda metade da década de 90, onde se assiste a uma maior passividade da política linguística e cultural de Portugal, em contraste com uma agressividade e dinâmica da política cultural francesa, de que o melhor exemplo foi a construção de um Centro Cultural de grande dimensão no centro da cidade de Bissau.
A relação entre as políticas de ajuda ao desenvolvimento e as raízes dos conflitos armados impõem que se analise de forma crítica o papel que a cooperação para o desenvolvimento pode ter. Tanto para os doadores oficiais, neste caso Portugal e França, como para os não governamentais, é fundamental reflectir sobre as consequências das suas políticas, retirando as necessárias ilações da noção de que uma cooperação mal orientada pode produzir efeitos altamente indesejáveis a médio e longo prazo.
A questão de Casamansa
A região de Casamansa, integrada actualmente no Senegal, teve, desde sempre, grandes afinidades com o território da então Guiné Portuguesa. Até à realização da Conferência de Berlim, entre 1884 e 1885, que viria a ser a responsável pela partilha de África entre as potências coloniais, Casamansa era uma região portuguesa. Na sequência desta Conferência, Portugal aspirou a concluir o seu projecto de união de Angola e Moçambique, projecto que ficou conhecido como o “Mapa Cor-de-Rosa”.
Para a conclusão de tal aspiração, Portugal precisava de obter a concordância das outras potências coloniais. Como é sabido, a Grã-Bretanha viria a opor-se, porém, tanto a Alemanha como a França não levantaram objecções a tal plano, desde que Portugal se disponibilizasse a fazer alguns acertos fronteiriços em zonas onde estes dois países tivessem territórios vizinhos dos portugueses (23). No caso francês, isto implicou a passagem da zona de Casamansa para os franceses em troca de território francês de Cacine na Guiné-Conacry. No caso alemão, Portugal acertou fronteiras no sul de Angola com o Sudoeste Africano, hoje Namíbia, e no norte de Moçambique com a África Oriental alemã, hoje Tanzânia (24).
A criação de mais uma fronteira artificial em África separou povos que tinham ligações históricas e culturais. Devido a isto, facilmente se entende que, quando surgiu em 1982, o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC) contasse desde logo com um forte apoio do outro lado da fronteira. Neste contexto, os guerrilheiros do MFDC habituaram-se a contar, ao longo dos anos, com o auxílio dos guineenses em termos de fornecimento de armamento e apoio logístico. Este apoio assentava no facto de existir uma ligação étnica entre o povo de Casamansa, maioritariamente da etnia Diola ou Djola, e o povo do norte da Guiné que são do mesmo grupo étnico, porém aqui designados por Felupes. O governo de Bissau, apesar de nunca ter apoiado abertamente os rebeldes, aparentemente fechou os olhos à ajuda que a nível nacional era dispensada ao MFDC.
É neste contexto que, em finais de 1997, é decidido pelo Governo guineense a criação de uma Comissão Inter-Ministerial, integrando elementos dos ministérios da Defesa e Administração Interna, para investigar a questão do tráfico de armas da Guiné-Bissau para os guerrilheiros de Casamansa. Finalizado o trabalho, esta Comissão produziu um relatório considerado muito polémico.
Dada a natureza e importância da questão também a Assembleia Nacional criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Tráfico Ilegal de Armas para os Independentistas de Casamansa (Zamora, I., 2001), que produziu um relatório após cerca de dois meses de investigações onde recomendava que, em face da não existência de acusações que ligassem o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas Brigadeiro Ansumane Mané ao tráfico de armas, fosse revisto o processo de suspensão do cargo que ocupava.
O início do Conflito
As primeiras notícias sobre os confrontos militares indicavam que se trataria de um incidente de proporções relativamente reduzidas. Tratava-se de uma acção, julgava-se nessa altura, de um pequeno grupo de militares chefiado pelo recém-demitido Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, Brigadeiro Ansumane Mané, que se decidira revoltar contra o Presidente.
Perante a revolta e face à constatação de que a esmagadora maioria dos militares guineenses se tinham associado à auto-intitulada Junta Militar, órgão supremo dos rebeldes, Nino Vieira viu-se obrigado a apelar à intervenção das tropas do Senegal e da Guiné-Conacry. Este pedido foi feito à luz de acordos de defesa mútuos assinados pelos três países e para salvaguarda de um regime constitucional e democrático. Aliás, Nino Vieira afirmou, em sua defesa, que os revoltosos tinham tentado levar a cabo um golpe de Estado contra um governo democraticamente eleito, o qual tinha o direito de apelar à ajuda internacional. No entanto, estes acordos de defesa previam a ajuda destes países à Guiné-Bissau em caso de agressão externa, que não era obviamente o caso. Este facto contribuiu para que a população se fosse cada vez mais aproximando das posições da Junta Militar.
O conflito guineense e o seu desfecho eram particularmente importantes para o Senegal que via numa eventual vitória da Junta Militar o aumento, desta vez aberto, do apoio da Guiné-Bissau à luta do MFDC. A intervenção senegalesa ficou conhecida com o nome “Operação Gabú”, tendo o contingente senegalês sido comandado pelo Coronel Abdoulaye Fall. No caso da Guiné-Conacry, a intervenção ficou a dever-se às boas relações existentes entre Nino Vieira e o Presidente Lansana Conté e o chefe da força, Comandante Samy Tambá, é morto em combate. (Zamora 2001).
Como era previsível, a consequência imediata da decisão de chamar tropas estrangeiras provocou o gradual aumento do apoio popular aos rebeldes e ao seu chefe, transformando o que era de início um acto de rebeldia estritamente militar num movimento essencialmente político.
A mediação internacional
Os esforços destinados a restaurar a paz entre os beligerantes começaram a surgir dos mais variados quadrantes. Para além de iniciativas internas (25), de autoridades religiosas, tradicionais e parlamentares, surgiram também iniciativas externas, sendo de destacar ao nível bilateral as contribuições da Gâmbia, Angola e Portugal e ao nível multilateral a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).
O Acordo de Paz de Abuja
Durante a Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da CEDEAO, realizada em Abuja (Nigéria), os dois líderes beligerantes, Nino Vieira e Ansumane Mané, foram ouvidos pelos Chefes de Estado presentes, tendo esta ronda negocial surtido efeito.
Assim, no dia 1 de Novembro, sob os auspícios da CEDEAO, as partes assinaram um
Acordo que estipulava o seguinte:
ACORDO DE PAZ DE ABUJA – 01 DE NOVEMBRO DE 1998
A reafirmação do acordo de cessar-fogo assinado em 26 de Agosto de 1998 na Cidade da Praia.
A retirada total da Guiné-Bissau das tropas estrangeiras. Esta retirada será efectuada simultaneamente com o envio de uma força de interposição da ECOMOG que substituirá as tropas retiradas.
A força de interposição garantirá a segurança ao longo da fronteira entre a Guiné-Bissau e o Senegal, manterá as partes separadas e permitirá às organizações e agências humanitárias o livre acesso às populações civis afectadas. Ao mesmo tempo, o aeroporto internacional Osvaldo Vieira e o porto de Bissau serão imediatamente abertos.
A criação de um governo de unidade nacional, que em conformidade com as posições do acordo já assinado pelas duas partes compreenderá entre outros os representantes da auto-proclamada Junta Militar.
A organização de eleições gerais e presidenciais o mais tardar até fim de Março de 1999, as eleições serão supervisionadas por observadores da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Comunidade Internacional.
(Fonte: Guilherme Zeverino & Luís Castelo Branco (2000): Guiné-Bissau – A Missão de Observação Eleitoral Internacional1999/2000. A Participação Portuguesa.)
Para a implementação do Acordo, foi criada a Comissão Executiva Conjunta para a Implementação do Acordo de Paz de Abuja, que integrou seis elementos da Junta Militar e cinco elementos do Governo guineense. Como observadores, contava com os elementos diplomáticos da troika (Portugal, França e Suécia), o Delegado da União Europeia em Bissau e o Representante da Comissão Mediadora de Boa Vontade (26).
O fim do regime de Nino Vieira
Em face da recusa de desarmamento, no âmbito do que estava estabelecido no Acordo de Abuja, a Junta Militar lançou uma operação militar em Bissau com o objectivo de derrubar Nino Vieira. Passadas pouco mais de 24 horas, os homens fiéis a Nino Vieira renderam-se. As forças da CEDEAO não se intrometeram no conflito. Após ter tentado obter refúgio na Embaixada francesa e depois na senegalesa, Nino Vieira foi acolhido, a conselho dos próprios dirigentes da Junta Militar, na Embaixada portuguesa. Uma série de coincidências fez com que fossem poupadas as vidas de Nino Vieira e dos seus colaboradores mais directos, bem como dos nacionais franceses (militares e diplomatas) encurralados nas instalações do Centro Cultural Francês. O pedido de ajuda do Governo francês a Portugal, para que este contactasse a Junta Militar, exigindo a segurança dos seus nacionais, foi executado imediatamente, o que evitou uma eventual intervenção militar francesa em larga escala.
A população manifestou a sua alegria pelo derrube do regime e descarregou a sua fúria sobre a Embaixada e Centro Cultural franceses, assim como sobre a Embaixada senegalesa. Os nacionais destes dois países tiveram que recorrer à protecção da Embaixada portuguesa, a qual foi respeitada pela população.
Pelo que foi referido, pode dizer-se que, na conjuntura complicada de relações e influências externas sobre a crise na Guiné-Bissau, não constitui novidade que Portugal e a França tivessem adoptado posições por vezes bastante diferentes sobre os acontecimentos que se sucederam ao 7 de Junho de 1998. Foi, sem dúvida, um período de alguma complexidade e tensão nas relações entre os dois Estados.
Após cerca de um mês na Embaixada portuguesa em Bissau, Nino Vieira pediu asilo político a Portugal (27). O argumento oficial para abandonar a Guiné foi a necessidade de cuidados médicos, comprometendo-se Nino Vieira a regressar ao país para se defender em tribunal das acusações que lhe eram imputadas.
Na sequência do Acordo de Abuja, deu-se início na Guiné-Bissau, em Janeiro de 1999, à preparação do processo eleitoral tendo em vista a realização das segundas eleições presidenciais e legislativas democráticas daquele país.
No dia 3 de Março, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para o Apoio à Reconstrução da Paz na Guiné-Bissau (UNOGBIS), a ser chefiada por um Representante Especial do Secretário-Geral (28). A UNOGBIS foi criada com a função de coordenar todo o trabalho do sistema das Nações Unidas na Guiné-Bissau durante o período de transição até à realização das eleições, no âmbito da implementação do Acordo de Abuja.
Reiterando todo o apoio ao processo de reconciliação nacional, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, por unanimidade, a 6 de Abril, a Resolução n.º 1233/99, que incentiva as partes a aplicarem os pontos do Acordo de Abuja, designadamente a adopção de todas as medidas para o funcionamento do novo governo, para o melhoramento da confiança e para o regresso dos refugiados 29.
O restabelecimento da normalidade democrática concretizou-se com a realização de eleições legislativas e presidenciais em Novembro de 1999 e Janeiro de 2000 e que contaram com largo apoio internacional expresso nos comunicados conjuntos dos Observadores Internacionais.
A vitória do candidato Kumba Yala e do Partido para a Renovação Social (PRS) deu início a um novo ciclo neste país, que depressa ficou marcado pelo agudizar da crise económica e social, pela perda de credibilidade da Guiné-Bissau ao nível internacional, pelo declínio das instituições, pela desresponsabilização das autoridades, pelo desrespeito pela Constituição e pela crise entre a Presidência e os órgãos da Justiça e a Assembleia.
Neste contexto, o mandato do Presidente da República Kumba Yala (2000-2003), interrompido por um golpe de Estado, pôs em evidência todas as debilidades existentes no país e ficou marcado por uma enorme instabilidade política e social. Desta forma, podemos considerar a Guiné-Bissau como um país “frágil”, onde os conflitos militares e político-sociais são uma constante, dilacerando a destruindo a estrutura da sociedade guineense.
O golpe de Estado de 14 de Setembro de 2003, liderado pelo General Veríssimo Seabra, que obrigou à resignação do Presidente Kumba Yala, dá início a outro processo de transição em que interinamente assumiu a Presidência o empresário Henrique Rosa, tendo o General Veríssimo Seabra assumido o cargo de presidente do Comité Militar para a Restituição Constitucional e Democrática, órgão consultivo do Presidente da República.
É neste contexto que são realizadas as eleições legislativas, em 30 de Março de 2004, que dão a vitória ao PAIGC. No entanto, mais uma vez, os elementos sempre presentes que estão na origem dos conflitos na Guiné-Bissau, em que podemos destacar a falta de diálogo para a resolução dos problemas do país por vias não violentas, são de novo postos em evidência com o assassinato do General Veríssimo Seabra, em Outubro de 2004, perpetrado por militares que tinham sido destacados anteriormente para missão de paz na Libéria no âmbito da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) e da ONU.
(12) Amílcar Cabral (1924-1973) ocupou um dos mais importantes lugares entre todos os dirigentes nacionalistas das colónias portuguesas. Os seus princípios procuraram ser claros tanto quanto à Guiné, como aos povos dos outros territórios portugueses, tendo orientado o seu pensamento e acção por duas ideias fundamentais: a luta nacionalista fazia-se contra o regime português e não contra o povo português, também ele vítima da ditadura; e a luta contra o regime português era a luta comum dos nacionalistas de todas as colónias portuguesas. Aniceto Afonso & Carlos Matos Gomes, Guerra Colonial, Lisboa, Diário de Notícias, 1999, p. 10.
(13) José Pedro Castanheira, Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, Lisboa, Relógio de Água Editores, 1995, p. 167.
(14) A Lei Constitucional n.º 7/74 foi promulgada a 27 de Julho e foi tornada extensiva às Províncias
Ultramarinas, pela Portaria n.º 790/74, de 8 de Agosto. Esta Lei faz o enquadramento da descolonização portuguesa. Através dela, Portugal reconhece que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar. Ao mesmo tempo, Portugal, de acordo com a Carta das Nações Unidas, reconhece o direito dos povos à autodeterminação.
(15) Carlos Cardoso, A Formação da Elite Política na Guiné-Bissau, Lisboa, ISCTE, 2002, p. 17.
(16) Queba Sambu, Ordem para Matar – Dos Fuzilamentos ao Caso das Bombas da Embaixada da Guiné,
Lisboa, Edições Referendo, p. 51.
(17) Adoptado no III Congresso do PAIGC, em 1977, este sistema garantia aos caboverdianos o mesmo número de cargos dirigentes no partido que os guineenses.
(18) Tcherno Djaló, Lições e Legitimidade dos Conflitos Políticos na Guiné-Bissau, Bissau, INEP, 2000, p. 29.
(19) Paulo Correia era nesta altura Ministro da Justiça e do Poder Local.
(20) Nesta revisão constitucional foi abolido o artigo n.º4, o qual consagrava o PAIGC como força política dirigente da sociedade e do Estado. A nova Constituição entrou em vigor a 9 de Maio de 1991. Fernando Marques da Costa & Natália Falé, Guia Político dos PALOP, Lisboa, Editorial Fragmentos/Fundação de Relações Internacionais, 1992, p. 121.
(21) Os membros da UEMOA são: Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné-Bissau, Mali, Níger,
Senegal e Togo.
(22) A entrada oficial da Guiné-Bissau na zona CFA deu-se no dia 2 de Maio de 1997, tendo começado, nesse dia, a ser substituídos os pesos guineenses por francos CFA. Jornal Público, n.º 2607, 02/05/1997.
(23) Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, volume IX (1851-1890), Lisboa, Edições Verbo, 1986, p. 161.
(24) Jornal Diário de Notícias, n.º 47255, 09/08/98.
(25) Uma das pessoas mais activas na procura de uma solução nesta altura foi o Bispo de Bissau, D. Arturo Settimio Ferrazzeta.
(26) Zamora Induta, Guiné – 24 Anos de Independência (1974-1998), Lisboa, Hugin Editores, 2001, p. 160.
(27) Chegado a Portugal, aonde lhe foi garantido asilo político, Nino Vieira ficou proibido, enquanto permanecesse em solo português, de empreender qualquer tipo de actividade política. BBC Africa, edição on-line, 11/06/99.
(28) The United Nations Homepage, 06/04/99.
In “A evolução política recente na Guiné-Bissau”
Autores
CARLOS EDUARDO SANGREMAN
(Prof. Auxiliar na Universidade de Aveiro e Investigador no Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento do Instituto Superior de Economia e Gestão, Lisboa)
FERNANDO SOUSA JÚNIOR
(Mestre e técnico superior no Gabinete para a Cooperação do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social)
GUILHERME JORGE RODRIGUES ZEVERINO
(Mestre e técnico superior no Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento do Ministério dos Negócios Estrangeiros)
MIGUEL MARCOS JOSÉ DE BARROS
(Estudante guineense de sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa)
Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento
Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG/”Económicas”) da Universidade Técnica de Lisboa
Lisboa, 2006
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