Um dia mais perto...
Vítor Junqueira
(ex. Alf. Mil. Inf. da CCAÇ 2753 - "Os Barões" Guiné - Bironque, Saliquinhedim/K3 e Mansabá)
(Actualmente é Médico)
(ex. Alf. Mil. Inf. da CCAÇ 2753 - "Os Barões" Guiné - Bironque, Saliquinhedim/K3 e Mansabá)
(Actualmente é Médico)
Nota: Texto enviado por e-mail, pelo Dr. Victor Junqueira em 2006/07
SC
Dr. Victor Junqueira |
Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em
dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida
de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para
mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um
simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado
Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha.
Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem
reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia, com “porrada” garantida.
Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da
segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição,
ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.
Obus 10,5 cm |
A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro
carregado de bugalhos: Uzi ao tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados
com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e,
pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares param a sua
metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um
par de gmd, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os
papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras,
tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada. “Olhos e ouvidos bem
abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio
onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho”, são as suas últimas
recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda “seguir a marinha”.
Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente
naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras
centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio,
paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o
ruído de fundo dos ERET´s e AVP1´s em AS são reduzidos ao mínimo.
Este é um santo pelotão! Dele fazem parte nada menos que dois Meninos
Jesus, por alcunha: O “básico” Aguiar, açoreano da Praia da Vitória, que é
meio tótó. E o furriel Tavares de Freixo de Espada à Cinta. Reina na segunda
secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há
ainda um Sto. António, virtuoso da HK.
Cunha, o “pica”, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança! A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o “alfero”, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um “ananás”. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoreano de nascença. Manobram um Mort. 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.
Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas. Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à “civilização”. O Kápa 3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.
Atingir o K3, representa o final
de uma campanha até agora bem-sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente
desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo
pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa
também que em breve, a 27ª de Comandos vai ser “despejada” pela C. Caç. 2753
ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel.
Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha... Tudo! E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim,
tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto
há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas,
pretas ou “verdianinhas”. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem
as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não
aguenta mais esta lei seca tão prolongada...
Mortos
de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao
stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com
putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada
particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um
baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem,
levanta algumas suspeitas... e muitos receios!
Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos
produzem um efeito chamado “cagaço”. Não se tratando um bando de almas penadas,
(os açoreanos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com
flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si! Na
floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de
um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes,
é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes
monstruosas que obriga a passar a palavra e...
a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar
silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas
na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de
decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa
excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de
ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam
num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas,** berrando que
nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo
soberbo, hilariante e inesquecível! Amanheceu. Ao longe, no silêncio
desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar
da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão
vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido,
cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo
através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador,
nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por
instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra! Da frente vem a
ordem “preparar para instalar”. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada
e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção,
por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o
tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo
serve para abrigar um pouco o canastro.
Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito
bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno
alívio, pois uma vez instalados o “conforto” é outro. Se o IN tiver o desplante
de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto,
o mais provável é que seja alvejado com umas morteiradas de 82 mm a partir de
uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir
emboscados, quando fizermos a perseguição. Esta é a táctica habitual, mas
ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com
umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente
as Kalash’s apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em
passo de corrida.
Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos,
ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos
abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos
amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros
instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número
indeterminado de roquet’s estoura à nossa volta e nas copas das árvores,
semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar
há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de
fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora
queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro
instrumental a que chamam ligeiro entram em acção como uma orquestra,
produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos
secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir
sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as
metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais
grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas
reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In
está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os mort. e LGF idem.
Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à
anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços
sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no
máximo. Subitamente, o silêncio.
A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim!
Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona
com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de
iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a
existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já
estavam á nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também alguns
materiais que abandonaram na precipitação da retirada.
Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos
vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram?
Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos
alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser
atingidos pela nossa própria artilharia de 14 cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou
a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já
levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas
morteiradas nos cornos para acelerar o passo. No Destacamento é o alvoroço.
Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos,
se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida,
coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a
evacuação, há-de regressar pelo seu pé.
Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não
nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição
que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da
sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a acção com uma espécie de nervoso miudinho
residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás
de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto
para cagar. Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho.
Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um
relaxante banho debaixo de um bidom instalado sobre um palanque constituído por
quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à
escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher
dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à
cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto.
O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer
para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono
entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo
nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais
perto!
Volto
aos registos da Companhia:
Fascículo
IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.
“Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um
grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6
metros com armas ligeiras e LGF um grupo da C. Caç. que progredia para
emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma
fita de munições de metralhadora ligeira”.
* Equivalente em açoreanês para piça,
pixota, pila etç.
** Idem para mariazinha, mariconço...
Texto
dedicado a todos os camaradas tertulianos com um abraço do
Vitor Junqueira
Vd. Post: Comparação G3 com HK 47 (Kalashnikov)
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