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terça-feira, 13 de março de 2012

P 146 UM DIA MAIS PERTO!... NA REGIÃO DE FARIM (Victor Junqueira, CCAÇ 2735, OS BARÕES)


Um dia mais perto... 
 Vítor Junqueira
(ex. Alf. Mil. Inf. da CCAÇ 2753 - "Os Barões" Guiné - Bironque, Saliquinhedim/K3 e Mansabá) 
(Actualmente é Médico)

Nota: Texto enviado por e-mail, pelo Dr. Victor Junqueira em 2006/07
SC
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      
Dr. Victor Junqueira
O normal dia de trabalho começa bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Hoje, dia 2 de Fevereiro de 1971, ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o “russo” (cozinheiro) e o “básico” seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno-almoço e a merenda para o 3º GC que por imperativo de escala, vão emboscar em Farim 2 C6 97. Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata comem mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que serve de refeitório, “a parelha dos tachos” aguarda impaciente. Querem voltar para o choco! Os homens vão assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentam-se praticamente em estado de prontidão isto é, devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort. 60 e grinaldas de munições de bazuca 6cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico variado. GMD penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, “quilómetros” de fitas para as HK. Todo o material se encontra limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, têm autênticos desvelos amorosos tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas! Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3, próprios e alheios, a que puderam deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consiste em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva. E não se disse ataviados, como impõe o aprumo e a gíria militar. Porque fardas são coisa que já não existe faz tempo. Mergulhos forçados no lodo das bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muitas pauladas aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, decretaram o seu desgaste precoce. Foram à vida! Por esta altura, vão-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no couro, umas já sem rasto, outras com buracos ventiladores nas biqueiras, alternam com as de lona, a dar as últimas. Há pessoal a sair para o mato levando nos pés uma espécie de chanatos adquiridos pelos próprios. É a crise a instalar-se!
       
Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha. Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia,  com “porrada” garantida.
     
Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição, ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.
Obus 10,5 cm
Para aquele tipo de acção já todos conhecem e ocupam os respectivos lugares na bicha de pirilau. Uma piada em código, um riso abafado e as últimas recomendações dos furriéis em voz baixa, misturam-se com o tinir metálico do equipamento, criando aquela atmosfera pretensamente descontraída que precede todas as saídas. São rituais que só os que foram “agraciados” com uma comissão no ultramar podem entender!
       
A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi ao tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares param a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de gmd, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada. “Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho”, são as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda “seguir a marinha”.
        
Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio, paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o ruído de fundo dos ERET´s e AVP1´s em AS são reduzidos ao mínimo.
       
Este é um santo pelotão! Dele fazem parte nada menos que dois Meninos Jesus, por alcunha: O “básico” Aguiar, açoreano da Praia da Vitória, que é meio tótó. E o furriel Tavares de Freixo de Espada à Cinta. Reina na segunda secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há ainda um Sto. António, virtuoso da HK.

Cunha, o “pica”, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança! A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o  “alfero”, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um “ananás”. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoreano de nascença. Manobram um Mort. 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.


Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas. Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à “civilização”.  O Kápa 3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.
HK-47 (Kalashnikov)
               
Atingir o K3, representa o final de uma campanha até agora bem-sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa também que em breve, a 27ª de Comandos vai ser “despejada” pela C. Caç. 2753 ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel. Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha...  Tudo! E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim, tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas, pretas ou “verdianinhas”. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não aguenta mais esta lei seca tão prolongada...
     
Mortos de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem, levanta algumas suspeitas... e muitos receios!  Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos produzem um efeito chamado “cagaço”. Não se tratando um bando de almas penadas, (os açoreanos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si! Na floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes, é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes monstruosas que obriga a passar a palavra e...  a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas,** berrando que nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo soberbo, hilariante e inesquecível! Amanheceu. Ao longe, no silêncio desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido, cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador, nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra! Da frente vem a ordem “preparar para instalar”. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção, por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo serve para abrigar um pouco  o canastro. Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno alívio, pois uma vez instalados o “conforto” é outro. Se o IN tiver o desplante de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto, o mais provável é que seja alvejado com umas morteiradas de 82 mm a partir de uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir emboscados, quando fizermos a perseguição. Esta é a táctica habitual, mas ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente as Kalash’s apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em passo de corrida.
     
Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos, ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número indeterminado de roquet’s estoura à nossa volta e nas copas das árvores, semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro instrumental a que chamam ligeiro entram em acção como uma orquestra, produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os mort. e LGF idem. Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no máximo. Subitamente, o silêncio.
     
A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim! Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já estavam á nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também alguns materiais que abandonaram na precipitação da retirada.
G-3
     
Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram? Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser atingidos pela nossa própria artilharia de 14 cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas morteiradas nos cornos para acelerar o passo. No Destacamento é o alvoroço. Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos, se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida, coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a evacuação, há-de regressar pelo seu pé.
     
Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a  acção com uma espécie de nervoso miudinho residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto para cagar. Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho. Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um relaxante banho debaixo de um bidom instalado sobre um palanque constituído por quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto. O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais perto!
         
Volto aos registos da Companhia:

Fascículo IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.
     “Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6 metros com armas ligeiras e LGF um grupo da C. Caç. que progredia para emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma fita de munições de metralhadora ligeira”.
     * Equivalente em açoreanês para piça, pixota, pila etç.
 ** Idem para mariazinha, mariconço...

Texto dedicado a todos os camaradas tertulianos com um abraço do
  Vitor Junqueira

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