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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

P299 - MEMÓRIAS DE MÉDICOS CUBANOS (1966-1969) – ‘XIV’ - O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [IV] -

MSG de Jorge Araújo com data de: 07 de Fevereiro de 2017

Para encerrar o dossier relacionado com as entrevistas dadas por três clínicos cubanos, que estiveram no CTIGuiné nos anos de 1966 a 1969, anexo o quarto e último fragmento relativo às derradeiras questões colocadas ao médico militar Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), especialista em cirurgia cardiovascular.
De referir que este médico esteve inicialmente na Frente Leste, onde assistiu à morte do Cmdt Domingos Ramos, em 10Nov1966, tendo transitado para Boké, por ter sido nomeado chefe do Hospital Militar do PAIGC nessa localidade da Guiné-Conacri, aí permanecendo dois meses. Seguiu-se nova transferência, agora para a Frente Sul, onde se manteve até ao final da sua missão, em dezembro de 1967.  
Com um forte abraço de amizade.
Jorge Araújo.

FEV’2017.

GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE
MEMÓRIAS DE MÉDICOS CUBANOS (1966-1969) – ‘XIV’
- O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [IV] -


1.   INTRODUÇÃO
Com a presente narrativa dou por concluídos os fragmentos em que foi dividida a entrevista dada pelo médico militar Virgílio Camacho Duverger [1934-2003], especialista em cirurgia cardiovascular, numa tarde de janeiro de 2003 [fez catorze anos] num pequeno gabinete do Hospital Clínico Quirúrgico Hermanos Ameijeiras [imagem ao lado], situado no centro de Havana, onde mantinha uma consulta voluntária todas as terças-feiras. 

Trata-se, com efeito, do último de quatro postes [este e os P284; P286 e P288] relativos ao diálogo que manteve com o jornalista e investigador Hedelberto López Blanch, e que faz parte de uma coletânea de revelações das suas vivências onde constam, ainda, a de mais dois clínicos cubanos que estiveram, nos anos de 1966 a 1969, na Guiné Portuguesa [hoje República da Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência.
Os outros dois clínicos que participaram na exposição das suas experiências foram o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado, que esteve na Frente Norte e Leste, entre 1966 e 1967, e o médico de clínica-geral e especialista em cirurgia Amado Alfonso Delgado, que esteve no Leste e em várias bases existentes nas matas do Unal e do Fiofioli, nomeadamente no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime, entre 1968 e 1969.
Com a divulgação deste fragmento, encerraremos, também, o projecto designado por «memórias de médicos cubanos», iniciado no P268 com a primeira parte dessa antologia que aqui decidimos divulgar, extraídas do livro editado em língua castelhana pelo jornalista Hedelberto López Blach.
À totalidade dessas memórias e experiências, já sinalizadas anteriormente, haveria o autor de lhes adicionar mais umas quantas recordações gravadas a partir de 1963, nos diferentes contextos das lutas africanas pela independência [Argélia, Congo Leopoldville, Congo Brazzaville e Angola], por outros doze “internacionalistas” cubanos do contingente do “estetoscópio e do bisturi”, e transformá-las em livro a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação.
Esta obra acabaria por vencer o «Prémio Memória 2001», do Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, uma instituição independente criada em 1996 com o apoio da União de Escritores e Artistas de Cuba [UNEAC]. Por sua vez a UNEAC é uma associação profissional, cultural e social que reúne escritores, músicos,
actores, artistas plásticos de nacionalidade cubana ou com fortes vínculos com Cuba. Foi fundada em 22 de agosto de 1961 pelo poeta cubano Nicolás Cristóbal Guillén Batista [Nicolás Guillén (1902-1989)] com o propósito de unir os intelectuais em torno do marco da revolução cubana, para manter, fortalecer e expandir a cultura cubana.
2.   – O CASO DO MÉDICO VIRGÍLIO CAMACHO DUVERGER [IV]
Virgílio Camacho Duverger, cujo nome de guerra era “Vítor Córdoba Duque”, nasceu a 29 de novembro de 1934, em Guantánamo, chegando à Guiné-Conacri nos primeiros dias de junho de 1966, a seis meses de completar trinta e dois anos de idade e sete anos após ter ingressado no Exército Rebelde como técnico de saúde.
Depois de ter assistido à morte do Cmdt da Frente Leste, Domingos Ramos, ocorrida em Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966 (fez recentemente cinquenta anos), Virgílio Duverger é transferido com destino à Frente Sul, por troca com o médico Rómulo Soler Vaillant, que entretanto adoecera. Porém, durante essa permuta, é nomeado chefe do Hospital Militar de Boké, aonde se manteve durante dois meses.
Aí, em junho de 1967, a base hospitalar dispunha apenas de quinze camas e uma pequena sala de operações. Pouco tempo depois, o Grupo de Clínicos passou a contar com mais uma unidade com a chegada do médico cubano Raúl Currás Regalado, que em determinadas situações desempenhava a função de anestesista.
Como consequência do aumento das enfermidades, nomeadamente a nível da população civil das bases, houve que limitar a entrega de materiais, sobretudo de cirurgia, pois corria-se o risco de poderem fazer falta para os combatentes feridos, por supressão desses produtos, situação entretanto verificada, recorrendo-se, em sua substituição, ao uso de linha doméstica em duas cirurgias.
Nessa altura, a sua equipa acabaria por receber um novo e inesperado reforço, desta vez de um português – o médico Mário Moutinho de Pádua – que seis anos antes, em 1961, ano zero da que se convencionou chamar de «Guerra Colonial» ou «Guerra do Ultramar», decidira desertar da sua unidade militar em Angola, optando por aderir aos objectivos dos movimentos africanos de oposição e resistência às colónias europeias, onde o PAIGC acabaria por contar com a sua colaboração.
Cerca de dois meses depois transitou para uma das enfermarias no mato existentes nas bases da Frente Sul, aonde as acções de combate eram em maior número do que as na Frente Leste devido à quantidade de aquartelamentos portugueses. Desde o local aonde ocorriam os combates até ao hospital, às vezes demorava-se três ou quatro dias para se transportar os feridos e estes chegavam em muito más condições. Como solução, ainda que precária devido à escassez de material como fio cirúrgico e soros, e onde os técnicos de saúde tinham de inventar, foi decidido organizar uma pequena enfermaria para a realização de algumas cirurgias. 
Seguem-se os últimos desenvolvimentos revelados durante a entrevista dada pelo cirurgião militar cubano Virgílio Camacho Duverger.

- Entrevista com 22 questões [Parte 4 > da 16.ª à 22.ª] -
“Testemunhos antes da morte”
O título entre aspas é da responsabilidade do jornalista Hedelberto López Blanch, justificado pelo facto do médico Virgílio Camacho Duverger ter falecido dez meses depois da entrevista, vítima de enfarte do miocárdio.
Eis as últimas questões:
   16. = Que tempo permaneceu na Frente Sul?
Na Frente Sul estive cerca de meio ano. Ali também existia o perigo de cair nas emboscadas dos portugueses, que as faziam, sobretudo, contra a população civil que apoiava os combatentes. Alguns cubanos caíram nessas emboscadas, incluindo quando se deslocavam da Frente Sul até à República da Guiné.
[Estará neste último caso, provavelmente, a morte do soldado cubano Eduardo Solis Renté (1948-1967), natural de San José de las Lajas, capital da Província de Mayabeque, Cuba. A um mês de completar dezanove anos, o seu desaparecimento ficou a dever-se a acidente, por afogamento, quando atravessava um rio do Sul da Guiné, no dia 13 de setembro de 1967. Foi considerado o primeiro mártir internacionalista lajero (de San José de las Lajas) foto ao lado]

Enfermaria em base do PAIGC no interior do território da Guiné (desconhecida)
        17. = Fale-me um pouco mais sobre a ajuda aos civis.
Tínhamos uma orientação geral de atender, na medida das possibilidades, a população civil de acordo com os medicamentos de que dispúnhamos, ou pelo menos atender os doentes. Em relação à limitação de operações devido à escassez de material, estando em Boké, numa ocasião as operações cirúrgicas tinham que ser autorizadas pela direcção política do PAIGC da zona.


Citação:
Mikko Pyhälä (1970-1971), "Mulher com criança aguardando uma consulta num hospital do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.042 (2017-2-04
)
Como estavam limitadas as intervenções cirúrgicas tivemos que falar com os alfaiates da região, a quem chamam de feats [talvez colaboradores?!], para confeccionar uma espécie de suspensores, porque a direcção política nos enviava algumas vezes casos de hérnias grandes e não as podíamos operar. Nestes casos enviávamo-los ao alfaiate explicando que isso lhes ia reduzir a hérnia, e que tinham de esperar até que fosse possível operar.
        18. = Quando o avisam sobre o final da missão e como saiu?
No final de 1967, recebo uma mensagem na enfermaria [no mato] aonde me encontrava, dando conta de que já tinha chegado o meu substituto. Vários companheiros cubanos e guineenses saímos caminhando do Sul até a um ponto da fronteira com a Guiné-Conacri, aonde se encontrava um transporte que nos esperava.
Durante a caminhada de cerca de dez quilómetros, tínhamos que evitar as emboscadas dos portugueses e passar por uma zona descampada, onde a aviação lusitana costumava metralhar as pessoas ou grupos que por ali passavam.
Os camiões levavam equipamento e alimentos aos guerrilheiros e eram conduzidos por motoristas-mecânicos cubanos.
A saída da Guiné-Bissau foi em finais de 1967, e na Guiné-Conacri estivemos vários dias num acampamento que chamavam Boa Vista. Ali confraternizámos com o substituto que chegara, sendo que este grupo já não era constituído só por militares, pois existiam alguns médicos civis. O nosso grupo, que foi o primeiro a chegar para apoiar a guerrilha, pude constatar que as coisas iam mudando.
Em Boké o hospital tinha melhorado substancialmente, à frente do qual estava um ortopédico de certa experiência, o doutor Noa, e já tinham um pequeno laboratório, um técnico de raios X e um anestesista. A todos os cubanos que regressavam e passavam por Boké, faziam-se exames médicos e clínicos para tentar descobrir alguma doença endémica da região.
Por exemplo, eu tive paludismo, doença que não existe em Cuba, e eu não sabia até ao momento que me fizeram o exame. Este sofrimento levava a um tratamento em duplicado, um para o parasita adulto e outro para a lavra. Em Conacri não existia o medicamento, sendo necessário adquiri-lo no Senegal ou na Costa do Marfim. Assim, fizeram-me o tratamento, que era com injecções intravenosas e comprimidos.
        19. = Como foi a saída da Guiné e a chegada a Cuba?
Foi por Conacri, no barco cubano Pinar del Rio. O filme voltou-se a repetir porque com esta embarcação voltaram a acontecer os mesmos problemas como os do Lídia Doce, com várias avarias ocorridas no alto mar [Oceano Atlântico].
Chegámos a Cuba em janeiro de 1968, e nos recebeu aquele que é agora general de divisão na reserva, Guillermo Rodriguez del Pozo [1929-2016.07.22], que havia substituído José Ramón Balaguer [Cabrera] [n-1932] como chefe dos Serviços Médicos do MINFAR [Ministério das Forças Armadas Revolucionárias]. Estivemos dois meses de férias e de seguida incorporei-me no Hospital Militar Central Dr. Carlos J. Finlay, como instrutor docente de cirurgia.
        20. = Como transitou para a especialidade de cardiologia?
Mais tarde sou nomeado pelo dr. Guilhermo Rodriguez del Pozo o qual me apresenta a ideia de realizar um estágio em cirurgia cardiovascular. Eu tinha outras ideias, mas depois de reflectir e de ouvir alguns conselhos decidi aceitar. Ele próprio me apresentou ao dr. Noel González [Julio Noel González Jiménez (1928-2016.01.17)], no Instituto de Cirurgia Cardiovascular. [O prof. dr. Noel González (foto ao lado) é considerado pioneiro na cirurgia cardiovascular ao realizar em 1985 o primeiro transplante de coração de Cuba e da América Latina].

Ali estive quatro anos em estágio na especialidade. Posteriormente passei de novo ao Hospital Finlay, para o Serviço de Cirurgia Cardiovascular Hemisférica. Nesta função permaneci dois anos, e para que não cristaliza-se no serviço de cirurgia cardiovascular nas Forças Armadas, solicitei a passagem para a cirurgia geral. Na sequência da autorização, nomearam-me Chefe de Serviço dessa especialidade e mais tarde Chefe de Departamento.
Em 1977, quando se cria o serviço de cirurgia cardiovascular das Forças Armadas no Hospital Naval Luís Diaz Soto transfiro-me para lá como Chefe de Serviço. Em 1982 passo para o Hospital [Clínico Quirúrgico] Hermanos Ameijeiras para fundar o serviço de cirurgia cardiovascular.
No ano de 1992 volto à vida militar e passo para o MININT [Ministério do Interior] como Subdirector do Hospital Nacional de Reclusos situado no Combinado Leste, aonde estou três anos até que me jubilei em 1994.
        21. = Sentia-se bem como jubilado?
Não, era uma vida muito aborrecida e após três anos de jubilação, chamam-me para que ocupe um lugar de cirurgia ambulatória no Município de Havana Leste, aonde continuo até agora (janeiro de 2003, quando se realizou esta entrevista) e aonde realizo pequenas operações três vezes por semana.
        22. = Em quantas operações ao coração participou?
São incontáveis as intervenções cirúrgicas cardiovasculares, mas como cirurgião principal tenho doze transplantes de coração. Um deles, a um doente de apelido Lafita que ainda vive. Já leva catorze anos desde que lhe fiz a operação.
1.   – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Corolário das setenta e cinco respostas dadas pelos médicos: Domingo Diaz Delgado (28), Amado Alfonso Delgado (25) e Virgílio Camacho Duverger (22), por esta ordem, às questões abertas formuladas pelo jornalista cubano Hedelberto López Blanch, que permitiram elaborar treze postes distribuídos ao longo dos últimos oito meses (junho’16 a fevereiro’17), resta-me terminar acrescentando alguns apontamentos pessoais.
1.    – No global, considero este trabalho de relevante valor sociocultural e histórico no contexto da dita “Guerra do Ultramar”, por nela ter participado (1972/1974), pois permitiu-me compreender melhor o outro lado do combate no CTIGuiné, não só na vertente militar, mais física, musculada ou operacional, como na dimensão política, que antes (na época) não passavam de meras suposições ou hipóteses, mas que ajudaram a ficar mais próximo da realidade.
2.    – Estes valores, ainda que resultem tão só de três depoimentos de uma panóplia de memórias e experiências gravadas, cada uma delas num espaço temporal de duas dezenas de meses, são-me suficientes para criar empatias quando aos sentimentos, emoções e tensões que influenciavam comportamentos e desempenhos ao comum dos mortais (de ambos os lados), conforme as circunstâncias e os contextos, mas que não poderiam afectar a tomada de decisões ajustadas, nos casos colocados na fronteira entre a vida e a morte, aos que decidiram seguir esta profissão – os médicos.
3.    – Antes de terminar, recupero um quadro de memórias transmitidas pelo médico Amado Alfonso Delgado, como exemplo paradigmático da tríade: sentimentos, emoções e tensões, visando sintetizar aquela que foi a odisseia dos “internacionalistas cubanos” no âmbito da sua ajuda humanitária ao PAIGC:
“Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os primeiros nove meses de 1969, durante os quais teve muito trabalho, com enormes sobressaltos, muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga (com diarreias), que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a destruição das suas enfermarias, por quatro vezes.
Esteve cercado por várias vezes. Viu aviões bombardeiros, helicanhões, barcos da marinha e militares descerem de helicóptero. Para além dos constantes ataques a que esteve sujeito, foi também atacado por melgas que lhe perfuraram a roupa que tinha no corpo e por centenas de abelhas que lhe “ofereceram” os seus ferrões. Por tudo isto passou vários meses sem ter contacto com o mundo. Devido a todas estas ocorrências e das tensões a elas associadas, por efeito da intervenção dos militares portugueses em diferentes acções naquela região, acreditou não ser possível sobreviver, pensando muito nos filhos, que iriam ficar sem pai… coitados”.
4.    – Concluo este trabalho, a que chamei de «memórias de médicos cubanos (1966-1969)», afirmando que “conclusão” [para mim] não significa o fim… mas, antes, o princípio de um outro processo de aquisição de novos saberes, que podem incluir outros clínicos.
Até lá…
Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
07FEV2017.
[Consulta em 30 de maio de 2016]. Disponível em:

Vd. Postes anteriores da série:

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